Literatura e estatística são campos que raramente se cruzam. Quando o fazem, podem gerar polêmica. É o caso de uma pesquisa coordenada por Regina Dalcastagnè, da Universidade de Brasília (UnB), que pretende traçar um perfil dos escritores e dos personagens da literatura brasileira contemporânea. Os primeiros resultados foram divulgados em publicações acadêmicas, em 2005, com repercussão na imprensa. O debate foi renovado com o lançamento, em 2012, do livro Literatura Brasileira Contemporânea — Um Território Contestado(Editora Horizonte/Editora UERJ, 208 páginas, R$ 45), que disponibiliza os números da pesquisa. Foram lidos 258 romances, publicados de 1990 a 2004, pelas editoras Companhia das Letras, Record e Rocco. A pesquisa revelou que os autores, na maioria, são brancos (93,9%), homens (72,7%), moram no Rio de Janeiro e em São Paulo (47,3% e 21,2%, respectivamente). Esse perfil médio do escritor brasileiro não é exatamente uma surpresa. A pesquisa inova ao dar números para o fenômeno, mostrando a dimensão do abismo que separa a diversidade da sociedade brasileira e sua efetiva presença na literatura. É a confirmação de uma hipótese que já se intuía: o campo literário ainda é um território para poucos. — Achei excessivo o número de autores brancos, comparando com a realidade do país. Claro que sabemos que há uma dificuldade maior para pessoas não brancas participarem de qualquer campo de discurso, mas foi um número que surpreendeu — diz Regina (leia entrevista). O perfil médio dos escritores se assemelha à representação dos personagens nos romances brasileiros contemporâneos. Eles são, em sua maioria, homens (62,1%) e heterossexuais (81%). As principais ocupações dos personagens masculinos são escritor (8,5%), bandido ou contraventor (7%) e artista (6,3%). As personagens femininas são donas de casa (25,1%), artistas (10,2%) ou não têm ocupação (9,6%). A assimetria prossegue no que diz respeito à cor. Os personagens negros são 7,9% e têm pouca voz: são apenas 5,8% dos protagonistas e 2,7% dos narradores. Os brancos são, em geral, donas de casa (9,8%), artistas (8,5%) ou escritores (6,9%). Os negros são bandidos ou contraventores (20,4%), empregados(as) domésticos(as) (12,2%) ou escravos (9,2%). Enquanto a maioria dos brancos morre, na ficção, por acidente ou doença (60,7%), os negros morrem mais por assassinato (61,1%). A escritora Ana Maria Gonçalves observa: — Teríamos que confrontar esses números com dados reais para saber o quão próximos ou distantes estão da realidade. Mas também é certo que, por ignorância — e uma de suas muitas consequências é o racismo — e/ou costume, características tidas como negativas são muito mais atribuídas a personagens negros — comportamento copiado da vida real — do que a personagens brancos.
O escritor e crítico Sérgio Rodrigues, do blog Todoprosa, contrapõe: — O mérito sociológico do levantamento é evidente, mas esse tipo de análise baseada no perfil sociocultural dos autores, típico dos estudos culturais, tem alcance limitado para dar conta do fenômeno literário. A coisa não é tão simples. Guimarães Rosa era branco, urbano e altamente educado, mas ninguém fez uma melhor tradução literária do sertão profundo.
Pesquisa será replicada no RS - Apesar de pouco expressiva em números, a representação das mulheres na literatura indica uma tendência de crescimento: elas estão sendo mais publicadas por grandes editoras do que antes. Depois de estudar os romances publicados entre 1990 e 2004, a equipe de Regina Dalcastagnè fez o mesmo com romances da época da ditadura, de 1965 a 1979. Das décadas de 1960 e 1970 para as décadas de 1990 e 2000, a proporção de autoras cresceu de 17,4% para 27,3%, uma possível conquista do feminismo que floresceu nesse período. Já a presença de personagens femininos decaiu de 40,7% para 37,8%. No que diz respeito à cor, a proporção de autores brancos cresceu de 93% para 93,9%. A presença de autores nascidos no Rio Grande do Sul passou de 4,7% para 12,7%, possivelmente devido à proliferação de oficinas literárias. Um dos participantes da equipe de Regina, o professor de literatura Ricardo Barberena, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), realizará uma pesquisa semelhante, com foco nos personagens de romances publicados por editoras gaúchas. Os primeiros números devem ser divulgados neste ano. — Uma de nossas hipóteses é que houve uma mudança para uma prosa mais urbana. A questão espacial será interessante de se pensar — diz Barberena.
Fonte : Racismo Ambiental
Fonte : Racismo Ambiental
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