terça-feira, 30 de junho de 2020

Negligência com a saúde reprodutiva das mulheres na pandemia é injustificável


Negar serviços de saúde essenciais para as mulheres durante a pandemia

 discrimina, viola direitos e custa vidas.

Por Beatriz Galli 


A ausência de respostas eficazes por parte do governo, além de suas dimensões continentais, fez do Brasil o epicentro da pandemia de covid-19 na América Latina. Não existe um plano de contingência integrado para enfrentar a doença, e cada estado implementou suas próprias regras de confinamento ou isolamento social. Essa resposta caótica à gravidade da pandemia já custou milhares de vidas.

No Brasil, o governo apela ao negacionismo irresponsável em relação à pandemia. A falta de estratégia nacional coordenada contribui para o aumento dos casos e a crise do sistema público de saúde. Nesse cenário, não se priorizam as necessidades de saúde de mulheres, adolescentes e gestantes nas ações de prevenção e resposta à crise sanitária.

Diante da pandemia, a OMS (Organização Mundial da Saúde) e os órgãos internacionais de proteção de direitos humanos solicitaram aos governos que garantam o acesso aos serviços essenciais de saúde, que incluem os serviços de saúde sexual e reprodutiva. Tais serviços incluem o acesso à informação, contracepção, contracepção de emergência, pré-natal, parto, aborto seguro nos casos previstos em lei e atenção pós-aborto.

A omissão dos estados em garantir o acesso oportuno e contínuo a esses serviços tem impacto devastador na vida e na saúde das pessoas. Um estudo com estimativas sobre a possível restrição ao acesso a tais serviços durante a pandemia aponta para um cenário dramático: em países de renda baixa e média, a redução de 10% nestes serviços pode resultar em cerca de 15 milhões de gestações indesejadas, 3,3 milhões de abortos inseguros e 29.000 mortes maternas adicionais durante os próximos 12 meses. Em um contexto de isolamento social, o risco de gravidez indesejada aumenta devido àviolência doméstica e à dificuldade no acesso aos serviços de aborto legal para mulheres e adolescentes.

Em meio à pandemia do novo coronavírus, Ministério da Saúde precariza serviços de saúde reprodutiva no País e ignora recomendações da OMS.

As barreiras sistêmicas persistem sem qualquer sinal de reversão, aumentando os riscos de morte por aborto inseguro durante a pandemia, particularmente para mulheres negras — residentes das áreas urbanas mais periféricas ou áreas rurais remotas —, mulheres migrantes e as jovens.

Os dados nacionais sobre o acesso e a qualidade da assistência para esses grupos populacionais são escassos. Entre 27 de abril e 4 de maio deste ano, a Artigo 19 e o site AzMina entraram em contato por telefone com os 76 hospitais que realizam a interrupção legal de gravidez, identificados em 2019 pelo Mapa do Aborto Legal. Apenas pouco mais da metade (55%) reportaram manter o serviço.

Em plena crise, a preocupação com a precarização ainda maior das políticas públicas de saúde sexual e reprodutiva aumentou com a nomeação do médico Raphael Câmara Medeiros Parente no último dia 23 de junho para a Secretaria de Atenção Primária do Ministério da Saúde. Ele é conhecido por sua postura contrária aos direitos sexuais e reprodutivos. Tal fato acontece após o Ministério da Saúde vir a público em 4 de junho para suspender nota técnica elaborada pela Coordenação de Saúde da Mulher (COSMU/SAPS).

O documento sistematizava legislação vigente sobre o acesso a serviços essenciais de saúde sexual e reprodutiva e orientava profissionais das unidades de saúde em relação à oferta de métodos anticonceptivos, realização do pré-natal e parto e assistência nos casos de aborto previsto em lei durante o momento atual, em pleno acordo com os padrões estabelecidos pela OMS. Posteriormente, o ministro interino da Saúde, o general Eduardo Pazuello, exonerou gestores e suspendeu contratos de técnicas que trabalharam na elaboração da nota.

Felizmente, no âmbito de alguns estados têm sido adotadas notas técnicas que orientam para o acesso aos serviços de saúde sexual e reprodutiva, como, por exemplo, a Nota Técnica 0301-04-2020 sobre Manejo do Ciclo Gravídico Puerperal e Lactação Covid-19 elaborada pela Secretaria de Saúde de São Paulo. A nota tem como objetivo “reduzir o número de gravidez não planejada e eliminar a violência contra as mulheres” e estabelece que “as unidades que realizam atendimento nas situações de violência sexual devem mantê-lo, inclusive às que realizam o aborto legal”.

Nada justifica a negligência estatal e o desmonte dos serviços de saúde reprodutiva, incluindo os serviços de aborto legal, ainda mais durante uma crise sanitária de dimensão planetária como a pandemia da covid-19. Ao ignorar as diretrizes da Organização Mundial da Saúde, o governo discrimina as mulheres e viola direitos fundamentais, sendo diretamente responsável pelos riscos e consequências para a vida das mulheres e gestantes.

Fonte: Huffpostbrasil

sexta-feira, 26 de junho de 2020

Se não fossem por mulheres negras estas invenções não existiriam

A matéria foi publicada na revista Galileu  lembrando que, sem elas, não teríamos acesso à tecnologia do GPS, filmes 3D ou GIFs

Por LARISSA LOPES

Após viralizar no Instagram e no Twitter, somando mais de 300 mil curtidas nas redes, uma publicação mostrou o quão importante foi o papel de mulheres negras para a invenção de objetos e tecnologias que usamos diariamente.
De filmes 3D a sistemas de segurança, não faltam exemplos de notáveis contribuições deixadas por cientistas, inventoras e empresárias negras. Conheça algumas invenções:

1. GPS
Gladys West (Foto: Wikimedia Commons)
Se hoje você pode se localizar com facilidade no trânsito, é porque a programadora norte-americana Gladys West (foto acima), nascida em 1930, deixou um grande legado para a tecnologia. Nascida em 1930 e vinda de uma família de trabalhadores agrícolas, West era uma aluna brilhante e, graças ao seu desempenho escolar, conseguiu uma bolsa de estudos na Universidade da Virgínia, formando-se mais tarde em matemática.

Foi a segunda mulher negra a trabalhar na base naval de Dahlgren, onde atuou por 42 anos com localização espacial de satélites. Recebeu prêmios e foi nomeada diretora do projeto do primeiro satélite a fazer um mapeamentos dos oceanos via radar.

2. Filmes 3D

A física Valerie Thomas foi a responsável por criar a patentear, em 1980, o transmissor de ilusão, dispositivo que simula a aparência tridimenssional de um objeto. A invenção foi e ainda é utilizada pela Nasa, agência espacial onde Thomas trabalhou entre 1964 e 1995 como analista de dados e gerente de projetos.

A física Valerie Thomas patenteou tecnologia que originou filmes 3D (Foto: NASA)



3. Condicionador

Minissérie da Netflix homenageia Madam C.J. Walker, primeira milionária self made negra dos Estados Unidos (Foto: Wikimedia Commons)
O cosmético que não pode faltar na lista de compras foi criado por Madam C.J. Walker, primeira mulher negra que enriqueceu por contra própria nos Estados Unidos. Por causa das dificuldades que enfrentava com o próprio cabelo, Walker teve a ideia de criar produtos especializados para o cabelo afro e acabou criando um império na indústria da beleza. Em março, a Netflix lançou uma série sobre sua vida e legado, protagonizada por Octavia Spencer, vencedora do Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante por seu papel em Histórias Cruzadas, de 2011.

4. Absorventes

Vinda de uma família de inventores, Mary Beatrice Davidson Kenner patenteou o absorvente menstrual em 1956, mas nunca chegou a receber qualquer recompensa ou lucro sobre sua criação, já que sua patente logo expirou e se tornou domínio público.
Outra invenção sua foi o suporte de rolo de papel higiênico, criado originalmente para facilitar o uso por pessoas com deficiência visual ou artrite.

5. Sistemas de segurança doméstico

Moradora do Queens, em Nova York, Marie Van Brittan Brown não se sentia segura ao voltar para a casa após longas jornadas de trabalho como enfermeira. Por isso, ela e seu marido, o eletricista Albert Brown, criaram o primeiro sistema de segurança doméstico, que, com quatro olhos-mágicos e uma câmera, permitia visualizar quem estivesse batendo à porta em um monitor. O sistema também contava com um botão de emergência para acionar autoridades caso algum incidente acontecesse.

6. Identificador de chamadas e chamada em espera

Shirley Ann Jackson recebendo do ex-presidente Barack Obama a Medalha Nacional de Ciências em 2014 (Foto: Wikimedia Commons)
Ambos recursos foram inventados graças às pesquisas da física Shirley Ann Jackson, a primeira mulher afro-americana a concluir um doutorado em física no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). As tecnologias foram desenvolvidas ao longo de seus estudos sobre telecomunicações na antiga AT&T Bell Laboratories.

7. Calefação central

Muito utilizada em países com inverno rigoroso, a calefação central é fundamental para manter residências aquecidas e foi patenteada por Alice H. Parker em 1919.
Entre as vantagens do sistema estavam a praticidade de não ter que estocar madeira para fazer uma lareira, a propagação do calor por todo o ambiente através de ductos, a rapidez do aquecimento e maior segurança para a casa, reduzindo riscos de incêndio.

8. Tábua de passar roupa

Esta é uma invenção de uma das primeiras mulheres negras a receber uma patente nos Estados Unidos, em 1892. Sarah Boone era costureira e, cansada do quão trabalhoso era passar a manga de uma camisa na época, criou uma versão aprimorada da tábua, que reduzia as chances de criar vincos involuntários na roupa enquanto passava.

9. Voz sobre IP



Marian Croak (Foto: Wikimedia Commons)

Sem a invenção de Marian Croak, fazer reuniões ou conversar com amigos durante a pandemia seria muito mais difícil. Isso porque a voz sobre IP é a base para a transmissão de áudios por serviços de internet, o que nos permite fazer chamadas por aplicativos, por exemplo. Croak é doutora em psicologia e análise quantitativa pela Universidade do Sul da Califórnia e vice-presidente de Engenharia do Google, onde tem trabalhado para expandir o acesso ao serviço em mercados emergentes.


10. Animação em GIF

Outra forma de se expressar na internet, além das chamadas de voz, são os GIFs, abreviação de Graphics Interchange Format. O formato gráfico foi desenvolvido por Lisa Gelobter, fundadora do tEquitable, uma plataforma independente que trata sobre viés, discriminação e assédio no mercado de trabalho.

terça-feira, 23 de junho de 2020

Brasil, um pais marcado por escândalos políticos e violência racial


Por Mônica Aguiar 

O número de denúncias de abusos cometidos por policiais militares no Brasil sempre foram altos. 
Graças ações de várias pessoas comuns, contrárias a tais práticas arbitrárias, gravações de cenas violentas em abordagem policial, tem chegado em setores importantes, chamado a atenção de gestores em segurança pública a tomar atitudes sobre as práticas que podemos definir como filtragem racial.
Mas para vários especialistas e, se, considerarmos os dados estatísticos 2019 e 2020 o uso excessivo da força nas operações policiais permanecem com grandes desafios.
Infelizmente existe uma grande falha de pensamentos entre o que se pode no cumprimento da função e o que não se deve fazer.
A legislação brasileira trata todas as ocorrências intencionais, em centenas de casos que envolvem policiais, mas, em maioria não há um afastamento penal. 
Com isto, muitos sente-se livres para tomar a atitude individual que achar melhor no momento da abordagem.
O que temos vivenciado cotidianamente são ações de policiais que ultrapassam os limites de atuação estabelecidos pela Lei no cumprimento do mandato legal. 
Torturas, falsos testemunhos, intimidações, ameaças, extorsões são práticas daqueles que se sentem livres para cometer crimes bárbaros.
Para muitos especialistas existe a “urgência em fazer revisão de protocolos, de modo a garantir a vida como principal valor tutelado pelo direito brasileiro. 
O monitoramento por parte do Ministério Público Estadual, que não deve se eximir de cumprir com o seu dever de controle externo da atividade policial e investir em ações de requalificação profissional que conscientizem nas sequelas deixadas pelo uso da força”.
No estudo Democracia e Violência Policial publicado em 2005, afirma que “Para se falar em violência policial é necessário entender o significado de abuso de autoridade” e cita trechos onde “ Oliveira e Tosta (2001, p. 60), que afirma que o termo abuso apresenta a idéia de excesso, injustiça e violação em relação às normas. Já o termo autoridade constitui a idéia de direito de se fazer obedecer, aquele que tem por encargo fazer respeitar as leis, ou representante do poder público".
Governadores e o próprio Presidente do Brasil, defendem ações enérgicas e repressivas das polícias e seus seguidores são adeptos as práticas de violência extrema. 
Não aceitam o importante papel dos direitos humanos e os efeitos colaterais que uma polícia sem controle pode provocar em toda a sociedade.

Estamos vivenciando um grande retrocesso na sociedade. 

Tudo que é condenável, ruim, desrespeitoso e abominável nas relações humana estão se aflorando como práticas e condutas naturais.

Ainda no Estudo “Democracia e Violência Policial”, podemos observar uma citação de [Gaspari (2002), .....[ as raízes da concepção do uso da força pelas corporações policiais brasileiras remontam ao período da ditadura militar. Naquele período havia a predominância de duas concepções sobre a segurança nacional. 
A primeira relacionava-se com o pensamento absolutista da segurança da sociedade, ou seja, o país está acima de tudo, portanto vale tudo para combater aqueles que o ameaçam. 
A segunda concepção referia-se à funcionalidade do suplício: havendo ameaça, os militares entram em ação, as pessoas falam e o "terrorismo" acaba.]...

Concepções de segurança pública adotadas e reafirmadas nas declarações de atuais Governadores e do Governo Federal são exemplos do tamanho do abismo existente. 
Com discurso subjetivo, criminalizador e de dominação da coisa pública, este Governo induz nas pessoas pensamentos que governos e corrupção são as mesmas coisas e que todos os parlamentares e partidos políticos são igualmente corruptos. Se colocam acima do Estado Democrático e da Constituição brasileira. Seus seguidores ficam tão à vontade com tais declarações que se sentem no direito de promover manifestações e atitudes extremistas e violentas, sem o menor respeito pelos poderes e principalmente pela Nação que governam. 

Com isto, crescem sistematicamente os índices de violência no Brasil. 

 O Pacote Anticrime do ex-juiz e ministro da Justiça, Sérgio Moro, estava focado em punir o crime do que em estratégias para impedir que ele acorressem.   Visava atacar três questões centrais: a corrupção, o crime organizado e os crimes violentos.  Ao considerarmos os últimos acontecimentos no Brasil, o discurso esta distante da realidade  
A família do Presidente da República cada dia mais se aprofundam em grandes escândalos ligados a corrupção, crimes organizados dentre outros, notórios nos meios de comunicações.

Papel da mídia

São inúmeros os casos denunciados de contravenção policial.
Muitas imagens expõem além da violência, a naturalização de ações criminosas.
A mídia pode e deve tratar de forma humanizada as denúncias ou simplesmente estimular de forma indireta as violências acometidas.  
Neste momento de crises e escândalos políticos, institucionais e estruturais é importante que a mídia se conscientize em contribuir de forma a diminuir as disparidades de violência policial existentes e conscientizar a sociedade das mazelas existentes do racismo.  
Para isto, seria necessário repensar o formato das matérias e publicações, as exposições realizadas de corpos humanos, sem culpabilizar as vítimas, sem criminalizar o local de moradia, sem gerar desconfiança, reafirmar a tese da suspeita em primeiro lugar e fortalecer estereótipos excludentes e criminalizatórios existentes na filtragem racial.
Naturalizar a violência não é o melhor formato por mais que a intenção seja de informar e denunciar fatos ocorridos.

Os Ministérios

O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos coordenado por Damares Alves, foi acionado no último 12 de junho , pelo Ministério Público Federal  à responder sobre a não divulgação na página do Ministério os indicadores de violência da polícia praticada no Brasil em 2019,   do relatório anual do Disque Direitos Humanos . 

Este relatório é um instrumento extremamente importante para analises e detectação de violações em direitos humanos, racismo e filtragem racial.

Mas infelizmente são pautas que não passam perto dos propósitos deste Governo que sustentam com tais atitudes as práticas de racismo institucional.

Qualquer que seja a as práticas de racismo, filtragem racial, mortes violentas, ocorridas no mundo e no Brasil praticados por policiais, não se vê uma manifestação dos Ministérios e Secretárias específicas deste Governo.

De fato, podemos observar uma série de ataques, reafirmações com conteúdo violentos e racistas que estimulam agressões contra população negra, sua cultura e religiões. 
Um exemplo foi a última declaração do Presidente da Fundação Cultural Palmares, ao se referir à Adna dos Santos ( Mãe Baiana) , atualmente coordenadora de Políticas de Promoção e Proteção da Diversidade Religiosa da Subsecretaria de Direitos Humanos e Igualdade Racial no Distrito Federal. O Presidente da Fundação Palmares foi extremamente violento com uma mulher negra, racista e intolerante, além de deixar “claro” aos seus comandos e agentes públicos que compactuam com esta ideologia governamental, seu papel de perseguição política aos militantes do movimento negro.

terça-feira, 16 de junho de 2020

UTOPIAS NEGRAS É TEMA DA 13ª EDIÇÃO DO FESTIVAL LATINIDADES

O maior festival de mulheres negras da América Latina anuncia a sua primeira edição 100% online e lança manifesto
O Latinidades – Festival da Mulher Afro Latino Americana e Caribenha, completa treze anos em 2020. 
Em função das medidas necessárias para conter a pandemia do novo coronavírus, sua 13ª edição acontece em formato inteiramente online, entre 22 e 27 de julho. 
O festival programa debates, oficinas, vivências, atividades infantis e literárias, apresentações artísticas e uma novidade: a criação de um espaço de negócios, voltado para promover empreendimentos de mulheres negras da cultura.
O projeto foi realizado pela primeira vez em 2008, no Distrito Federal e, mais que um festival, hoje é plataforma de formação e impulsionamento de trajetórias, saberes e fazeres de mulheres negras nas mais diferentes áreas do conhecimento. A programação dos seis dias de evento será divulgada em breve.negra
Confira abaixo o manifesto-chamada para o tema de referência que guiará as atividades deste ano:
Utopias Negras
Se não imaginarmos alternativas, não haverá nenhuma
A , em África e diáspora, tem sido forçada a concentrar-se nas emergências por sobrevivência. A luta por direitos inegociáveis como liberdade, teto, pão, dignidade, cultura, cidadania, saúde física, mental, espiritual e emocional, infelizmente, não é algo novo, sobretudo nas vidas das mulheres negras. Para o desespero de muitos, nossas antepassadas nos deixaram como legado a ousadia de pautar e se articular em torno de muito mais do que apenas sobreviver.
Chegamos até aqui porque as que vieram antes não abriram mão daquilo que parecia inalcançável: construir e ocupar outros lugares, além dos que foram predeterminados pelo patriarcado e pelo racismo colonial sistêmico. Essas utopias, utopias negras, são tecnologias ancestrais, às quais devemos, mais do que nunca, recorrer como possibilidade de direção agora. Sonhar para combater o absurdo.
Conectadas com histórias de resistência que não nos contaram nos livros, aprendemos que a memória é uma disputa constante e avançamos para o futuro, guiadas pelo pássaro Sankofa. Ele olha para a frente, enquanto se move para trás e nos diz: “Se wo were fi na wosankofa a yenkyi – não é tabu voltar para trás e recuperar o que você perdeu”.
Vivendo na prática essa herança filosófica, ancestral e não linear, nos tornamos sementes. E, como afirma o provérbio bantu, a semente é mais velha que a árvore. As utopias de nossas mais velhas nos trouxeram até aqui e nos levarão além.
De 22 a 27 de julho, realizaremos a 13ª edição do Festival Latinidades e, por meio dela, queremos reafirmar que as nossas utopias têm valor e podem mudar o mundo para melhor. Não abriremos mão dos nossos próprios marcos imaginativos, porque já temos um rol de conquistas a partir deles. Utopia para nós é tradição, é fundamento.
Somos um festival multilinguagens, que parte do lugar das artes e da cultura para dialogar, disputar narrativas e fortalecer diferentes saberes de mulheres negras: na academia, na rua, em casa, na escola, no chão de fábrica, na comunicação, nos movimentos sociais, na gestão de políticas públicas, na diversidade infinita das nossas potências e possibilidades de produção de conhecimento.
Somos plataforma de formação, cultura, inovação, impacto social, encontro, encanto, acolhimento, celebração e resistência – em exercício constante de decolonialidade. Queremos compartilhar e conhecer outros sonhos de rebeldia, amor, coragem e transformação. Abrir novas frentes de trocas com outros pares e pautas. Em 2019 saímos de Brasília para São Paulo; falamos sobre “Reintegração de Posse” e acolhemos o debate sobre masculinidades negras. Em 2020 teremos a nossa primeira edição 100% online e queremos ampliar diálogos com as nossas irmãs indígenas.
A pandemia de Covid-19 escancarou as desigualdades que já estruturavam o planeta e abriu espaço para mais distopias. A luta por sobrevivência se complexificou e tem demandado quase tudo de que podemos dispor. Não está nada fácil. Principalmente sabendo que somos alvos. Contudo, não podemos abrir mão de redesenhar o futuro, a partir das nossas próprias óticas, éticas e utopias. As distopias paralisam. As utopias têm o poder de nos impulsionar.
“Mataram o sonhador e não o sonho” – esse mantra estava em um dos cartazes, empunhados no enterro de Martin Luther King Jr. Mas com tudo o que temos para lidar, será que nós ainda conseguimos sonhar?
Às vezes parece que vamos nos afogar em notícias ruins – umas atrás das outras. Sentimentos, imunidades, movimentos e energias oscilam minuto a minuto. Chegamos a pensar que é impossível, ou até perigoso, nutrir esperança. Mas utopias não são o perigo. Perigoso é, justamente, não sonhar. Estamos acostumadas com frases como: “sonhar não paga contas, é ingenuidade, coisa de criança” (e de que crianças estamos falando, afinal?).
A quem interessa a negação das nossas utopias e do nosso direito a projetar o futuro? Por que apenas uma pequena parcela da humanidade está autorizada a isso? Existe um projeto capitalista, genocida, que quer moldar os nossos sonhos, enquanto nos pressiona a optar entre sonhar ou sobreviver. Mas como sobreviver sem sonhar?
25 de julho é o Dia da Mulher Afro Latino Americana e Caribenha. No Brasil esse dia foi instituído por lei, em 2014: Dia Nacional de Tereza de Benguela, fruto de anos de articulações dos movimentos de mulheres negras. Pelo décimo terceiro ano, estaremos, mais uma vez, provocando e sendo provocadas a celebrar o Julho das Pretas, como marco de luta das mulheres negras na diáspora. Nossa história nasce de muitas utopias, herdadas e construídas. Não vamos parar. Vilma Reis já nos alertou: “somos a esperança nos escombros”. Então, na mesma lógica do fique em casa, se puder, por favor, sonhe.

Fonte: Agência Patricia Galvão 

quarta-feira, 10 de junho de 2020

Não vamos deixar passar este momento de combater o racismo, diz Jurema Werneck

Ao HuffPost, diretora da Anistia Internacional no Brasil reflete sobre onda de protestos nos EUA, violência policial contra negros por aqui e caso Miguel como "racismo descortinado" na frente de todos.



Por Amauri Terto

Dra. Jurema Werneck
Multidões têm tomado as ruas nos últimos dias em protestos motivados pela morte de um homem negro, George Floyd, causada pela brutalidade de um policial branco nos Estados Unidos. As manifestações se espalharam também pelas redes sociais, colocando o debate racial na ordem do dia. 
Para a diretora executiva da Anistia Internacional no Brasil, Jurema Werneck, é possível avaliar a onda de manifestações por dois ângulos.
“É uma resposta a uma situação trágica e ultrajante, que é a polícia matar uma pessoa negra como faz todo dia, tanto lá quanto cá [Brasil], por nada. Só porque pode. Só porque o racismo autoriza”, disse ao HuffPost Brasil, em entrevista por telefone. Por outro lado, ela vê o momento atual como oportunidade de mudança.
“Quem não é vítima direta do racismo também está saindo às ruas. Estamos vendo brancos, latinos e asiáticos nos protestos. O chamado é este: não vamos deixar passar”, completa Werneck, que também é ativista do movimento de mulheres negras no Brasil.
O “tanto lá quanto cá, por nada” que Werneck diz ao abordar a questão da violência policial remonta a um processo social em curso denominado por movimentos ativistas como genocídio da população negra. E não faltam elementos que justifiquem o termo. 
“Qualquer dado da segurança pública desagregada por raça/cor demonstra que tem uma produção de mortes constantes. Nesses tempos da covid-19, inclusive, tem aumentado”, explica Werneck. “São Paulo acaba de bater o recorde de mortes pela polícia. Fazia tempo que isso não acontecia. Na cidade do Rio de Janeiro, houve um aumento de 58% das mortes produzidas pela polícia em operações nas favelas”, enumera.
No Brasil, a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado. Nos últimos dois anos, pelo menos sete casos de crianças ou adolescentes deixaram de ser apenas números para ganhar o noticiário e chocar o País. Sete vidas negras que foram interrompidas pela violência policial, fruto do racismo estrutural: Agatha Felix (8 anos), Kauã Ribeiro (12 anos), Jenifer Gomes (11 anos), Kauan Peixoto (12 anos),  Pedro Gonzaga (19 anos) e João Pedro (14 anos).

Nascer daquele jeito [de Miguel], viver daquele jeito e morrer daquele jeito é o racismo descortinado na frente de todo mundo. Não é apenas a negligência, o descaso da patroa. Antes dela, já havia muitos outros descasos.
Na semana passada, o País lamentou a morte de mais uma criança negra: Miguel Otávio, filho de uma empregada doméstica, que caiu de um prédio de luxo no Recife enquanto estava sob os cuidados da patroa de sua mãe. O pequeno de 5 anos não foi vítima de brutalidade policial, mas também teve sua história interrompida pelo racismo estrutural, na avaliação de Werneck.
“Miguel nasceu filho de uma mulher negra, mãe solteira. Neto de uma mulher negra, também mãe solteira. A mãe de Miguel mora em uma favela, trabalha como doméstica, foi exposta à covid-19 pelo patrão e foi exposta à tragédia que foi Miguel perder a vida tão novinho. Está aí o racismo”, argumenta.
“Nascer daquele jeito, viver daquele jeito e morrer daquele jeito é o racismo descortinado na frente de todo mundo. Não é apenas a negligência, o descaso daquela mulher [patroa]. Antes do descaso da patroa já havia muitos outros descasos”, defende.
O debate que surgiu nas redes sociais sobre uma possível apatia da população negra diante de tantos crimes de cunho racista - numa comparação com o levante ocorrido nos Estados Unidos - é também considerado por Werneck como uma perspectiva racista sobre a questão.
“É a negação da presença do negro próximo. Nós estivemos e estamos nas ruas há muito tempo. A gente nem sempre está na Avenida Paulista. Às vezes os negros estão ao pé do Morro do Alemão, nos becos da Favela da Maré ou no Jardim Ângela”, diz Werneck, citando favelas do Rio de Janeiro e um distrito na periferia da zona sul de São Paulo.
“O discurso racista sempre disse que o negro brasileiro era acomodado. Já passou da hora de se rever isso. O chamado é para a gente ser antirracista e olhar para o mundo e agir por essa lente. É preciso questionar esses lugares-comuns que se repetem indefinidamente porque o racismo não acaba”, alerta.
Para a ativista, também não faz sentido refletir sobre o racismo a partir de diferenças demográficas. Nos EUA, negros são minoria; já no Brasil compõem 56% da população. “Se eu for uma pessoa negra nos bairros negros dos Estados Unidos ou no Brasil, a dor, a violência e a produção de morte será igual. Independentemente das condições de minoria ou maioria, a experiência real do racismo é igual”, afirma. 

Formas de combater o racismo 

Em um artigo publicado aqui no HuffPost Brasil em 2017, Jurema Werneck afirmou que, além de recursos e longo prazo, para enfrentar o racismo é preciso políticas de Estado e compromisso de todos.
Questionada sobre quais políticas públicas já existentes poderiam ser ampliadas em prol da equidade racial no País, Werneck, que também é médica, dirige suas críticas à área da saúde. “As políticas públicas já existentes podiam estar operando para quebrar o pacto do racismo na vida das pessoas, portanto ser uma ferramenta antirracista”, afirma, observando as limitações da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, cuja implementação começou em 2009.
Werneck também defende que a luta das mulheres negras deve ser “sempre central” no debate racial. “O movimento de mulheres negras tem diversas agendas porque nós estamos imersas no cotidiano e também projetando o futuro. O chamamento que se faz a todos e todas é garantir o protagonismo das mulheres negras para a vocalização do que é necessário neste momento”, afirma.
No trecho do artigo em que a diretora executiva da Anistia Internacional no Brasil aponta a necessidade de um “compromisso de todos”, ela se refere também à adoção de uma postura antirracista.
“Ser antirracista é uma atitude permanente”, alerta Werneck. “É uma transformação em tempo real. Não há como você acordar e simplesmente dizer ‘eu não sou racista’. Não é assim. Faça a autocrítica, aprenda a enxergar e aprende a confrontar, tudo ao mesmo tempo.”

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