Negar serviços de saúde essenciais para as
mulheres durante a pandemia
discrimina, viola direitos e custa vidas.
Por Beatriz Galli
A ausência de respostas
eficazes por parte do governo, além de suas dimensões continentais, fez do
Brasil o epicentro da pandemia de covid-19 na América Latina. Não existe um
plano de contingência integrado para enfrentar a doença, e cada estado
implementou suas próprias regras de confinamento ou isolamento social. Essa
resposta caótica à gravidade da pandemia já custou milhares de vidas.
No Brasil, o governo
apela ao negacionismo irresponsável em relação à pandemia. A falta de
estratégia nacional coordenada contribui para o aumento dos casos e a crise do
sistema público de saúde. Nesse cenário, não se priorizam as necessidades de
saúde de mulheres, adolescentes e gestantes nas ações de prevenção e resposta à
crise sanitária.
Diante da pandemia, a
OMS (Organização Mundial da Saúde) e os órgãos internacionais de proteção de
direitos humanos solicitaram aos governos que garantam o acesso aos serviços
essenciais de saúde, que incluem os serviços de saúde sexual e reprodutiva.
Tais serviços incluem o acesso à informação, contracepção, contracepção de
emergência, pré-natal, parto, aborto seguro nos casos previstos em lei e
atenção pós-aborto.
A omissão dos estados
em garantir o acesso oportuno e contínuo a esses serviços tem impacto
devastador na vida e na saúde das pessoas. Um estudo com estimativas sobre a possível restrição
ao acesso a tais serviços durante a pandemia aponta para um cenário dramático:
em países de renda baixa e média, a redução de 10% nestes serviços pode
resultar em cerca de 15 milhões de gestações indesejadas, 3,3 milhões de
abortos inseguros e 29.000 mortes maternas adicionais durante os próximos 12
meses. Em um contexto de isolamento social, o risco de gravidez indesejada
aumenta devido àviolência
doméstica e à dificuldade no acesso aos serviços de aborto
legal para mulheres e adolescentes.
Em
meio à pandemia do novo coronavírus, Ministério da Saúde precariza serviços de
saúde reprodutiva no País e ignora recomendações da OMS.
As barreiras
sistêmicas persistem sem qualquer sinal de reversão, aumentando os riscos de
morte por aborto inseguro durante a pandemia, particularmente para mulheres
negras — residentes das áreas urbanas mais periféricas ou áreas rurais remotas
—, mulheres migrantes e as jovens.
Os dados nacionais
sobre o acesso e a qualidade da assistência para esses grupos populacionais são
escassos. Entre 27 de abril e 4 de maio deste ano, a Artigo 19 e o site AzMina entraram em contato por
telefone com os 76 hospitais que realizam a interrupção legal de gravidez,
identificados em 2019 pelo Mapa do Aborto Legal. Apenas pouco mais da metade (55%)
reportaram manter o serviço.
Em plena crise, a
preocupação com a precarização ainda maior das políticas públicas de saúde
sexual e reprodutiva aumentou com a nomeação do médico Raphael Câmara Medeiros
Parente no último dia 23 de junho para a Secretaria de Atenção Primária do
Ministério da Saúde. Ele é conhecido por sua postura contrária aos direitos
sexuais e reprodutivos. Tal fato acontece após o Ministério da Saúde vir a
público em 4 de junho para suspender nota técnica elaborada pela Coordenação de Saúde da Mulher
(COSMU/SAPS).
O documento
sistematizava legislação vigente sobre o acesso a serviços essenciais de saúde
sexual e reprodutiva e orientava profissionais das unidades de saúde em relação
à oferta de métodos anticonceptivos, realização do pré-natal e parto e
assistência nos casos de aborto previsto em lei durante o momento atual, em pleno
acordo com os padrões estabelecidos pela OMS. Posteriormente, o ministro
interino da Saúde, o general Eduardo Pazuello, exonerou gestores e suspendeu
contratos de técnicas que trabalharam na elaboração da nota.
Felizmente, no âmbito
de alguns estados têm sido adotadas notas técnicas que orientam para o acesso
aos serviços de saúde sexual e reprodutiva, como, por exemplo, a Nota Técnica
0301-04-2020 sobre Manejo do Ciclo Gravídico Puerperal e Lactação Covid-19 elaborada
pela Secretaria de Saúde de São Paulo. A nota tem como objetivo “reduzir o
número de gravidez não planejada e eliminar a violência contra as mulheres” e
estabelece que “as unidades que realizam atendimento nas situações de violência
sexual devem mantê-lo, inclusive às que realizam o aborto legal”.
Nada justifica a
negligência estatal e o desmonte dos serviços de saúde reprodutiva, incluindo
os serviços de aborto legal, ainda mais durante uma crise sanitária de dimensão
planetária como a pandemia da covid-19. Ao ignorar as diretrizes da Organização
Mundial da Saúde, o governo discrimina as mulheres e viola direitos
fundamentais, sendo diretamente responsável pelos riscos e consequências para a
vida das mulheres e gestantes.
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