Por : Francisca Sena
Em 2006, o noticiário divulgou o julgamento de uma jovem de 19 anos,
empregada doméstica, por ter tentado roubar um pote de manteiga num comércio
em São Paulo. O roubo foi evitado pelo dono do estabelecimento. A jovem foi
condenada a 4 anos de prisão, em regime semi-aberto.
Em fevereiro de 2008, Antonio Francisco Araújo da Silva cometeu um grave
crime no interior do Ceará, na cidade de Ubajara. Espancou todo o corpo e deu
marteladas na cabeça de Francisca das Chagas Oliveira (conhecida como Fran),
mulher com quem era casado. Fran, depois de muito machucada, inclusive com
afundamento da caixa craniana, desmaiou em meio a tamanha agressividade. O
desmaio fez o agressor acreditar que ela havia morrido e por isso ele parou com
seu ataque de fúria. Fran sobreviveu, mas em decorrência desse crime brutal, até
hoje tem sequelas que alteraram radicalmente a sua vida: toma medicamentos,
vive submetida a tratamento psicológico, perdeu 50% da audição e sofre com
dores no braço direito, entre outras. A dor e o transtorno na família de Fran
também não podem ser esquecidos.
Diante da impossibilidade de apagar esse crime na história de sua vida, ao longo
desses 5 anos, familiares e amigas/os da Fran, movimentos feministas - em
especial o Movimento Ibiapabano de Mulheres - MIM, vem clamando por justiça,
na tentativa desse crime não ficar impune. Esse sentimento foi alimentado ainda
mais pelo fato do acusado não ter ficado preso um dia sequer pelo crime
cometido.
Ontem, 27/02, finalmente Antonio Silva foi julgado no Fórum Clóvis Bevilaqua,
em Fortaleza. Ao final do julgamento, veio a sentença: 4 anos de condenação em
regime aberto. O argumento absurdo de que o agressor não tem antecedentes
criminais, funcionou mais uma vez para abrandar a pena.
A condenação do Antonio Francisco Araujo da Silva foi mais amena do que a da
jovem mulher que tentou roubar uma lata de manteiga, alegadamente para ajudar
aliviar a fome do seu filho. Isso nos faz concluir que a vida de uma mulher vale
menos do que uma lata de manteiga. Como pode haver uma mesma punição para
dois casos tão díspares, quando o primeiro relaciona-se com a possível violação
de uma mercadoria e o outro caso, tem relação com a violação efetiva da vida de
uma mulher?
Enquanto ainda estamos inconformadas com a sentença, permanece em nós os
sentimentos ruins provocado durante o julgamento, ao rememorar os fatos da
violência e tocar novemente nas feridas. Tudo isso diante do agressor, frio,
calculista. Há quem o classifique como “monstro”, mas queremos considerá-lo na
sua condição humana e por isso mesmo, tem a consciência de que a sua presença
no mundo tem uma dimensão ética, que o torna capaz de tomar decisões, de fazer
escolhas, de prever as consequências dos seus atos, de viver em relação com
suas/seus semelhantes. Não, ele não é monstro!
É um homem, adulto, machista, que certamente aprendeu a acreditar ser o dono da
vida das mulheres com quem se relaciona, que usa da força e da violência contra
as mulheres para impor suas vontades e interesses, que estabelece uma relação
desigual com uma mulher e se acha no direito de maltratá-la, de espancá-la e de
tentar tirar sua vida
covardemente, que usa a violência como recurso para resolução de conflitos.
Temos que reconhecer que esse comportamento é tipicamente humano. Somente o
considerando humano, é que podemos querer que ele assuma a consequência dos
seus atos, que ele seja punido por ter cometido um grave crime de violência
contra a mulher, que podemos pressionar a justiça para retirar do criminoso o
direito de ir e vir livremente. Mas se um crime desta gravidade não é devidamente
punido, fica um péssimo exemplo para outros homens que são ou que poderão ser
violentos com as mulheres que estão em volta deles.
E o que tudo isso tem a ver com cada uma/um de nós? Qual a nossa
responsabilidade em desconstruir as bases de uma sociedade marcadamente
machista? Quando ousaremos educar nossas crianças para a igualdade e o respeito
entre mulheres e homens? Que mudanças no cotidiano podemos fazer para que
outros Antônios não sejam formados e outras Franciscas não sejam vítimas de
violência sexista? Quando teremos a ousadia de semear outros valores para
nossos meninos em formação? Quando deixaremos de presentear nossos filhos
com revólveres e espadas de brinquedo, para que eles aprendam desde cedo a
exercitar a violência? Quando exigiremos que a justiça brasileira não amenize os
crimes de violência contra as mulheres, sob o pífio argumento de que o homem
não tem antecedentes criminais? Até quando a violência contra as mulheres?
A violência sofrida pela Fran nos enche de indignação! E nossa indignação é
porque esta sentença deixa em nós o sabor de impunidade; porque certamente este
homem não cumprirá nem metade desta pena; porque ele permanecerá solto
representando uma ameaça à vida de Fran, de sua família e também de outras
mulheres que se aproximarem dele; porque a justiça é cega para os crimes
cometidos contra as mulheres; porque esse crime não é isolado, mas engrossa as
estatísticas da marca de 1 bilhão de mulheres que sofre com a violência em todo o
mundo.
Mas esta indignação, aliada ao desejo de justiça, também nos mobiliza. Em nome
delas continuaremos a ir pras ruas, a levantar nossas bandeiras, a lutar pelo fim da
violência contra as mulheres, a tocar tambores denunciando as opressões e,
sobretudo, a continuar lutando pela defesa, efetivação e ampliação dos direitos
das mulheres.
Enquanto houver injustiça, sempre haverá luta!!!
Francisca Sena – militante do Instituto Negra do Ceará e
do Fórum Cearense de
Mulheres
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