RESUMO
O artigo apresenta uma reflexão sobre a mulher negra na comunicação.
Realiza, para isso, uma análise do filme Filhas do Vento, lançado em
2003, sob a direção de Joel Zito Araújo. Recorre ao conceito e às
implicações de identidade cultural. Debate o mito da convivência cordial
das três raças que dão origem ao brasileiro. Lembra a situação de
negras e negros na sociedade e na comunicação, que ainda é marcada pela
discriminação. Tanto, que, ao avaliar de forma específica a televisão,
Muniz Sodré afirma que esta faz um “controle de rostos” na sua
programação, ocultando a realidade estética do nosso país. Este artigo
tem também como base os estudos sobre a mulher na comunicação que
apontam, por exemplo, o tripé moda-casa-coração como sustento da
imprensa feminina. Após tal caminho teórico, o artigo analisa cenas do
filme, que são representativas do tema.
Palavras-chave: Comunicação. Cinema. Identidade Cultural.
por * Cláudia Regina Lahni ** Nilson Assunção Alvarenga *** Mariana Zibordi Pelegrini **** Maria Fernanda França Pereira no
INTRODUÇÃO
Este artigo apresenta uma reflexão sobre a mulher negra na
comunicação. Define, para isso, realizar uma análise do filme Filhas do
Vento, lançado em 2003, sob a direção de Joel Zito Araújo. O filme conta
a história de duas irmãs, que foram criadas pelo pai. Uma continuou
morando com ele, em sua pequena cidade natal. A outra mudou para a
cidade grande, com o sonho de atuar como atriz. A morte do pai motiva o
reencontro das irmãs, suas filhas e netas. Todas as personagens do filme
são negras – exceção feita a um papel secundário e de figuração. Com
tal especificidade, Filhas do Vento vem ao encontro da reflexão que se
pretende neste trabalho.
Para sua realização, o artigo recorre, inicialmente, ao conceito e às
implicações de identidade cultural. Debate o mito da convivência
cordial das três raças que dão origem ao brasileiro. Lembra a situação
de negras e negros na sociedade e na comunicação, ainda marcadas pela
discriminação. Tanto, que, ao avaliar de forma específica a televisão,
Muniz Sodré (1999, p.17) afirma que esta faz um “controle de rostos” na
sua programação, ocultando a realidade estética do nosso país. O artigo
teve também como base os estudos sobre a mulher na comunicação que
apontam, por exemplo, o tripé moda-casa-coração como sustento da
imprensa feminina. Percorrido esse caminho teórico, o artigo apresenta a
análise de algumas cenas do filme Filhas do Vento, que são
representativas do tema. Espera-se que este trabalho possa contribuir
para o debate sobre a situação da mulher negra na comunicação e, assim,
para mudanças em prol de uma comunicação mais democrática.
IDENTIDADE CULTURAL
Falar em identidade implica uma relação de permanência, delimitações e
principalmente uma relação de semelhanças e diferenças. A relação de
permanência liga o sujeito a uma continuidade histórico-social, que o
permite identificar-se ou não com determinada cultura, já que a cultura é
transmitida como herança. As delimitações permitem diferenciar os
elementos pertencentes ou não a uma cultura e, deste modo, incluí- los
ou excluí-los de um grupo. E a relação de semelhanças e diferenças é que
permite ao sujeito se reconhecer a si mesmo como membro de uma cultura.
O olhar, além de detectar as aparências, atribui valores e determina a
orientação de conduta, através dos processos de identificações.
Na sociedade pós-moderna – onde as mudanças são rápidas, contínuas e permanentes -, surgem novas identidades, deslocando e descentrando as antigas. Tais identidades são ainda mais fragmentadas, por exemplo, nacionalidade, classe, sexualidade, etnia e raça.
Na sociedade pós-moderna – onde as mudanças são rápidas, contínuas e permanentes -, surgem novas identidades, deslocando e descentrando as antigas. Tais identidades são ainda mais fragmentadas, por exemplo, nacionalidade, classe, sexualidade, etnia e raça.
É nesse âmbito que as minorias enfrentam um embate com culturas que
atravessam fronteiras geográficas e atrelam-se a novas comunidades
delimitando, deste modo, diferentes contexto de espaço- tempo, “tornando
o mundo, em realidade e experiência, mais interconectado” (MCGREW, 1992
apud HALL, 2004, p.67). Nesse universo, a identidade é partilhada pelo
consumismo e culturas locais funcionam como foco de resistência.
No Brasil, a formação da identidade cultural ocorreu na época da
propagação dos ideais liberais, das teorias positivistas e iluministas e
no auge da Revolução Industrial, que contribuiu para supervalorização
dos europeus em território nacional.
Numa sociedade esteticamente regida por um paradigma branco (…) a
clareza ou brancura de pele, mesmo sem as barreiras guetificantes do
multiculturalismo primeiro-mundista, persiste como marca simbólica de
uma superioridade imaginária atuante em estratégias de distinção social
ou defesa contra perspectivas ‘colonizadoras’ da miscigenação. (SODRÉ,
1999, p. 234)
Além disso, a representação da mulher na sociedade global é a de um
papel subalterno (PAIVA, 2003), em que é relacionada a modelos que
transcendem a uma conjuntura histórica, tais como o casamento, a
sexualidade e a família, já que se constituem moldes permanentes e
imutáveis.
Isso acontece por boas razões: exatamente porque as mulheres, tendo
sido relegadas à au- sência, ao silêncio e à marginalidade, elas também
foram, até certo ponto, relegadas para a fímbria do discurso histórico,
se não for para uma posição totalmente fora da história (e da cultura),
que tem sido definida como a história do homem (via de regra de classe
média) branco. (KAPLAN, 1995, p. 17).
A sociedade européia e patriarcal é, historicamente, tomada como
modelo pelos brasileiros. Não corresponder a esse molde é sinônimo de
exclusão. O cinema não foge a esta colocação. Para satisfazer às
expectativas dentro do padrão dominante a figura negra e feminina, de um
modo geral, não é representativa nos produtos cinematográficos
nacionais. Seus papéis são limitados a arquétipos e estereótipos, que
contribuem para o fortalecimento da dominação do homem e branco. Diante
deste paradigma, a inserção da mulher negra no cinema confronta dois
fortes fatores predominantes da identidade cultural brasileira e, deste
modo, ainda mais discriminada, o que reflete inclusive em outros
produtos midiáticos, como é o caso da telenovela.
ETNICIDADE E NEGRITUDE NA SOCIEDADE E NA MÍDIA BRASILEIRAS
A origem do brasileiro sustenta o mito das três raças, que juntas
povoaram o país convivendo com “cordialidade e democracia”. Obviamente, a
realidade é bem diferente. Os índios foram praticamente dizimados. Os
negros são excluídos e marginalizados social e culturalmente. Por fim,
os brancos imperam com seu pseudo-eurocentrismo. Isso porque, no nosso
país onde a miscigenação é uma constante, ser branco é muito mais um
papel social do que algo relacionado à raça ou etnia.
A sociedade brasileira teve uma formação contraditória e, ao mesmo
tempo, tolerante à questão étnica-racial. Durante o Império (1821-1889),
por exemplo, vigorou a escravidão desumana, porém havia negros livres
que ocupavam cargos do governo. Foi justamente no período inicial da
República, no qual pregava-se a democracia, que foram divulgadas teorias
racistas que visavam o clareamento da população. A partir do século
XIX, com o reconhecimento de alguns intelectuais e artistas negros, o
preconceito foi sendo amenizado e maquiado (RODRIGUES, 2001). Mas até
hoje, os negros continuam numa posição subalterna na sociedade.
Para alguns teóricos, a miscigenação seria a solução para o
embranquecimento populacional e para o padrão estético europeu seguido
no Brasil.
Por trás da mestiçagem encontra-se a idéia de uma ‘raça’ capaz de
resolver o problema paradigma branco-europeu e a diversidade das
pigmentações da pele humana no mundo. (SODRÉ, 1999, p.192).
A partir dos anos 1990, quando os afro-descendentes passam a ser
vistos como consumidores, a imagem do negro na mídia tornou-se mais
recorrente. Criam-se produtos específicos destinados aos negros. Com
isso modelos e atores afro-brasileiros ganharam espaço na publicidade.
Nessa década, em 1995, é lançada a revista Raça-Brasil, que é uma mescla
de valorização, orgulho e auto-estima, mesmo que com um apelo mais
estético do que político. Apesar disso, ainda há temas de anúncios
aproximando-se da figura do branco. Pode-se citar, como exemplo, as
publicidades de produtos alisantes em que se indica um ideal estético de
ter cabelos lisos.
A área musical e a indústria fonográfica formam o espaço onde,
provavelmente, haverá maior expressividade da negritude no Brasil. É
inquestionável a contribuição e influência dos negros na formação
cultural brasileira, sobretudo na música. Funk, axé e hip-hop estão,
geralmente, associados à cultura afro-descendente, mas é o samba a
referência mundial da cultura brasileira, originada dos negros
habitantes das favelas.
Porém, é na comunidade litúrgica afro-brasileira que está toda sua
particularidade cultural: o terreiro é o espaço de práticas e relações
sociais; o candomblé é a religião e o ritual; músicas, danças e roupas
têm seus significados e representações sobre o mundo.
A liturgia afro-brasileira forma uma comunidade, com “foco gerador de
modelos” de relações e apelo à memória não como função psicológica, mas
uma invenção de um passado, de uma ancestralidade que se afirma e luta
para inscrever a singularidade brasileira no espaço de coexistência
nacional. (SODRÉ, 1999, p.220-221).
A valorização da comunidade litúrgica é uma maneira encontrada por
afro-descendentes para cul- tivar e cultuar suas raízes pré-migratórias.
Outras comunidades espalhadas pelo Brasil também buscam resgatar as
origens de diferentes formas, que é fenômeno de dupla lealdade: às
origens e ao país que agora residem.
Trata-se de um modo singular de produção da subjetividade, de
construção de um imaginário coletivo e de organização de instância de
enunciação da identidade do grupo. Os quadros simbólicos de uma
referência próprios a esse tipo de etnicidade des/reterritorializam,
abran- gem espaços efetivos, rituais e políticos difíceis de delimitar. E
a relação entre o local, global e original (real ou mítico), nesse
contexto se dá em termos bastante complexos, que podem ser tanto (ao
mesmo tempo) confluentes e conflituosos. (ELHAJJI, 2005, p.197).
A mídia absorve, reelabora e transmite o imaginário coletivo nas
representações sociais. Como fica o negro na mídia? Não muito diferente
da sua realidade social. É verdade que a realidade está se modificando, o
problema é que essa mudança é muito lenta. Enquanto isso os
afro-brasileiros que estão à margem da sociedade desde a abolição da
escravatura (e durante a escravidão), agora continuam marginalizados nas
favelas, com acesso precário ao estudo e emprego e também sem ser
representados na sociedade (cargos político) e na mídia (jornalistas,
atores e personagens que realmente identifiquem os afro-brasileiros).
Não há como dizer que as oportunidades são iguais para todos se no
Brasil os negros vivem, em média, seis anos menos que os brancos,
recebem menos da metade de seus salários e, de cada mil crianças negras
nascidas vivas, 76,1 morrem antes de completar 5 anos de idade, 30,4 a
mais que as crianças brancas. Não há como afirmar que existe igualdade
em um país onde dos cerca de 45% de afro-descendentes (negros e pardos),
69% desta população é pobre e a taxa de pobreza entre os negros é quase
50% maior que entre os brancos. (RIBEIRO, 2004, p.20-21)
A cidadania da mulher é algo que a mídia praticamente não representa.
Seu papel ainda prevalece muito indefinido nos meios de comunicação,
ora tratando-as como meras consumidoras de artigos da moda, beleza e
casa, ora concedendo um espaço para sua participação na sociedade.
Embora a classe mais economicamente favorecida da população esteja
intrínseca em um imaginário de igualdade entre os gêneros, a realidade
de muitas mulheres ainda é marcada pela discriminação. Um estudo da
Fundação Perseu Abramo (outubro de 2001) revelou que, a cada 15
segundos, uma mulher é agredida no Brasil. Outra pesquisa conferida pelo
Instituto Patrícia Galvão (setembro de 2004), indicou os problemas que
mais preocupam as brasileiras hoje: 30% delas apontaram a violência
contra a mulher dentro e fora de casa, vindo depois o câncer de mama e
de útero (17%) e a Aids (10%).
A mídia reproduz os dados apresentados acima quando trata da figura
feminina de forma estereotipada, ou seja, firmando-lhe atributos que são
julgados tipicamente da natureza da mulher e de seu poder de consumo. É
o caso, por exemplo, dos programas ou das revistas femininas, que
sintetizam o tripé moda, casa e coração (BUITONI, 1990) e, deste modo,
como afirma Maria Otilia Bocchini (2000), tornando- se verdadeiras
inimigas das mulheres. Tais valores femininos que são pregados por este
tipo de mídia reafirmam a discriminação e acentuam a visão apolítica e
não-cidadã das mulheres na sociedade.
Entretanto, a representação pública das mulheres na mídia não é
homogênea, já que responde a distintas expectativas. Não se pode separar
esta representação dos valores sociais dominantes presentes em todas as
esferas da intervenção social e da cultura.
(PAIVA, 2004, p.3)
Pode-se citar segmentos informativos que procuram reproduzir um
perfil midiático da mulher diferenciado da temática abordada pelos meios
de comunicação de massa, como é o caso da Folha Feminista, publicação
da Sempreviva Organização Feminista (SOF), ou da Marcha Mundial das
Mulheres e suas publicações, que atuam sobre todas as esferas temáticas
que afligem a população mundial, mostrando que assuntos de mulher são
todos os assuntos.
Na história brasileira, a representação da mulher é praticamente
nula. Considerando que o valor que difere história e passado é a
substância da sociedade (HELLER, 2000) isso significa que, no conteúdo
da cultura brasileira, o feminino é parte de um segmento de exclusão
social, que, como já exemplificado, se reflete na mídia. A verdadeira
história do Brasil, assim como a luta cotidiana de milhares de
brasileiras e brasileiros, é marcada pela atuação de várias mulheres, em
infinitos âmbitos e esferas temáticas.
A NEGRA NA TELEVISÃO E NO CINEMA
A televisão faz um “controle de rostos” (SODRÉ, 1999) na sua
programação, ocultando a realidade estética do nosso país. Pode-se tomar
como exemplo a Rede Globo; seus profissionais que aparecem diante das
câmeras são hegemonicamente brancos. No telejornalismo, há como destaque
de âncora mulher e negra, apenas a jornalista Glória Maria,
apresentadora do Fantástico. De vez em quando, aparece uma jornalista
negra, principalmente em uma eventual reportagem local de uma das
afiliadas da Globo. Segundo Muniz Sodré (1999, p.246), Glória Maria
funciona como um “simulacro de democracia racial”.
As telenovelas oferecem uma gama de problemas sobre a questão da
representação das negras. Primeiramente, o número de personagens negras é
muito inferior, não correspondendo à realidade. Em um estudo detalhado
sobre aparição negra nas telenovelas, Joel Zito Araújo (2000) confirma
que, com a exceção das novelas que têm como pano de fundo a escravidão e
questões abolicionistas, e que mesmo nessas histórias os negros são
coadjuvantes e figurantes para um romance entre brancos, sua
participação e problematização é limitada.
Em poucos trabalhos identificamos atores negros nos papéis
principais, de protagonistas ou antagonistas. (…) O afro-descendente só
terá a sua oportunidade assegurada se existirem rubricas que evidenciem a
necessidade de um ator negro. (ARAÚJO, 2000, p.308)
Como exemplo de discriminação da mulher negra na telenovela, pode-se
citar a atriz Ruth de Souza, que na década de 1950, teve uma imensa
participação no teatro e no cinema, porém, em sua primeira aparição na
televisão em A deusa vencida, em 1965, na TV Excelsior, obteve o papel de uma empregada subalterna, uma mucama bisbilhoteira (Araújo, 2000).
A ligação da telenovela no cinema é tão decorrente que se torna difícil tratar das produções
A ligação da telenovela no cinema é tão decorrente que se torna difícil tratar das produções
cinematográficas sem a comparação com os produtos televisivos. No
cinema, e isso também se estende às telenovelas, as personagens negras
não são individualizadas e muitas vezes não apresentam profundidade
psicológica. Nos arquétipos e caricaturas apresentados por João Carlos
Rodrigues (2001), a negra pode ser representada pelos arquétipos da mãe-preta, da mártir, da negra de alma branca, da nega maluca, da mulata boazuda e, finalmente, da musa.
A mãe-preta é um arquétipo com raízes na sociedade
escravocrata brasileira. A escrava negra amamenta o filho do sinhô
branco. Ela retém uma característica de sofredora e conformada. Na
telenovela podemos citar como exemplo O direito de nascer, de 1964, na TV Tupi. A mãe-preta, no entanto, não é muito comum no cinema brasileiro moderno.
A mártir é também oriunda da escravidão e aparece na ficção
brasileira que trata deste período, ainda que de passagem. Como exemplo,
há o vídeo Anastácia, escrava e santa, de Joatan Vilella Berbel (1987).
A negra de alma branca pode ser exemplificada pela história de Xica da Silva representada
tanto no longa-metragem de Carlos Diegues (1976) como na telenovela de
Gilberto Braga (1977). Xica, sendo amante de um alto-funcionário da
coroa portuguesa, tentou se integrar na sociedade dominante.
A nega maluca trata-se do equivalente feminino do arquétipo crioulo doido.
Uma personagem endiabrada, que faz trapalhadas e confusões. A mulata
boazuda é o arquétipo que trata da exploração da sexualidade da mulher
negra. A musa seria um tipo pouco freqüente na arte brasileira, que,
segundo Rodrigues (2001), em maior freqüência pode revelar um real
amadurecimento social e humano dos cineastas e roteiristas. Muniz Sodré
(1999) aponta alguns mecanismos para o racismo midiático: a mídia nega a
existência do racismo, a não ser que seja notícia; tanto no
telejornalismo como na indústria cultural ocorre o recalcamento dos
aspectos identidários das manifestações simbólicas negras; a
estigmatização (marca da desqualificação da diferença), que é o ponto de
partida para a discriminação; e a indiferença profissional promovida pelo desinteresse pelos problemas das minorias.
Tanto na sociedade como na mídia, com a valorização estética e da
cultura dos brancos, acaba-se por gerar o fenômeno da invisibilidade
social: os negros não se identificam com as representações que a mídia
faz deles e, por vezes, a fim de se enquadrarem na sociedade, usam
recursos estéticos para se aproximarem dos brancos.
Joel Zito Araújo (2004) aponta dois exemplos de telenovelas onde a
discriminação e o preconceito são finalmente descobertos em sua
intimidade. A primeira é Anjo Mau - 1997, de Maria Adelaide
Amaral, na qual há um núcleo negro que gira em torno do drama de dona
Cida (Léa Garcia), uma mãe que esconde da filha branca, que possui as
características raciais do pai, seus vínculos da maternidade com o
intuito de não prejudicar sua vida. Esta dramatização foi pouco
utilizada pela televisão brasileira, assim como o cin- ema, embora seja
um tema recorrente na realidade de um país tão marcado pela ideologia do
branqueamento e do patriarcalismo. Em Por Amor - 1997, de Manoel
Carlos, a discriminação, assim como a violência doméstica, é
exemplificada pelo marido branco, de origem sueca, que rejeita a
gravidez de sua esposa e artista plástica negra Márcia (Maria Ceiça). O
bebê mestiço, porém, nasce com os traços do pai, que daí implora o
perdão de sua mulher. Apesar da história marcante, após a reconciliação
do casal, a história e o núcleo se esvaziam, contrariando a sinopse que
indicava um segundo filho do casal na trama.
O exemplo cinematográfico tomado neste artigo faz uma análise mais
profunda, por se tratar de um longa-metragem que aborda questões
referentes à telenovela brasileira. Daí, novamente, pode-se traçar a
dificuldade em se contestar a figura da negra no cinema sem entrar nos
méritos televisivos. Filhas do Vento – 2003, de Joel Zito Araújo, não
traz a representação da negra apenas como personagem; muito além disso,
faz um questionamento das relações pessoais e sociais que as personagens
enfrentam no filme. Aqui o universo feminino é contraposto com o modelo
de cultura patriarcal, assim como são mostradas as dificuldades de
inserção da negra na sociedade e na mídia.
FILHAS DO VENTO
Dois motivos encadearam a escolha de Filhas do Vento. O
primeiro foi por se tratar de um filme que obteve a maior participação
de atores e atrizes negras como protagonistas, ou seja, suas personagens
expressaram um perfil psicológico aprofundado, sem estereótipos. O
segundo decorre da ligação do filme com a representação do negro na
mídia, especificamente, sua participação na telenovela.
Toma-se como análise a questão temática do filme, já que o objetivo é
problematizar a inserção social e midiática da negra. Os diálogos são
peças essenciais para a discussão acerca das dificuldades que Filhas do Vento procurou
representar nas figuras das irmãs Cida (Taís Araújo e Ruth de Souza) e
Maria da Ajuda ou Ju (Talma de Freitas e Léa Garcia) e de suas
respectivas filhas Dora (Danielle Ornelas) e Selma (Maria Ceiça).
O longa aborda a trajetória de duas gerações de uma família negra no
interior de Minas Gerais, tendo como mote as escolhas de vida de duas
irmãs criadas por um pai severo. Cida sonha ser atriz e foge de casa em
busca desse sonho, enquanto Ju permanece no interior cuidando do pai.
Apesar do tempo e da distância, elas compartilham dos mesmos problemas,
as implicações do machismo, do racismo e do relacionamento difícil com
suas filhas.
Quando jovens as duas irmãs conversam sobre suas perspectivas. Cida
diz a sua irmã que pretende conhecer um novo mundo, que deseja se tornar
uma grande atriz do rádio.
Cida: “Tô cansada, Ju. Nada acontece nesse lugar, cê num percebe
não? Ouve só… sapo, grilo, coruja… onde é que foi todo mundo? Foram
dormi cedo, pra acordá cedo, pra dormi cedo, pra acordá cedo.”; Ju: “Essa é a nossa vida, uai.”; Cida: “A minha não é, não, Ju.”.
Tal desejo é reprimido pela imposição do pai, marcado pela lembrança
de sua esposa, que o deixou para ir morar na cidade grande; e por sua
irmã Jú, que alerta Cida sobre os problemas que ela pode enfrentar em
busca de seu sonho, sendo mulher e negra.
Cida: “Mas eu… quero sê alguém nessa vida, Dona Ju.”; Ju: “Uma dessa daí do rádio?”; Cida: “E por que não?”; Ju: “Esse num é nosso destino, não, Cida. Se fosse, Deus fazia a gente nascê branca.”.
A discriminação e a dificuldade de ascensão profissional são fatores
que Cida, quando jovem, não toma conhecimento ou relevância. Somente
mais velha, repassando sua experiência para a sobrinha, é que essas
barreiras são de fato apresentadas.
A personagem Cida é o espelho da análise de Joel Zito Araújo sobre a
representação do negro da telenovela, uma ótima atriz que nunca
conseguiu um papel de protagonista. Os estereótipos, que foram descritos
anteriormente, também são apresentados não na forma de uma personagem,
mas nos diálogos entre as tias e as sobrinhas. Selma, a filha de Cida,
em discussão com a tia Ju sobre a carreira de Dora, aponta para os
arquétipos que envolvem a figura da negra. Selma: “Uma escrava aqui, uma empregada ali, figuração em terreiro de candomblé.”.
Já Dora, que procura ajuda da tia para conseguir ser atriz, desabafa
para Cida que nem ao menos um papel de “favelada” ela consegue. Por ser
considerada muito bonita e muito educada, eis que surge um novo
estereótipo para a moça: atriz de filme norte-americano. Dora: “Sou um novo tipo de estereótipo: figurante de filme do Spike Lee.”;
Cida: “Não se deixe abater, filha.”; Dora: “Eu fico cada
vez mais irritada com isso, tia. E o último papel, que eu peguei na
novela? Só para tapar buraco. Eles põem a gente nessa fria só pra
mostrar que são politicamente corretos.”; Cida: “Quantas vezes eu
não me matei para fazer uma boa cena e, quando ia ver na televisão, a
câmera estava focalizando a bonitona branca.”.
Tal colocação sugere que mesmo com todas as superações de
preconceito, ou seja, ainda que a atriz negra seja reconhecida pelo bom
trabalho e desempenho, novas formas de discriminação, ou de tentativa de
enquadramento em arquétipos, serão impostas. Além disso, ressalta a
abordagem maquiada da televisão sobre a representação do negro.
O contraponto entre filhas e mães, expondo as diferenças de concepção
de vida que cada uma apresenta, a vida na grande cidade e a vida no
interior, é um fator que expressa a dificuldade de inserção social.
Aqui, faz-se uma leitura de que, independente da escolha de vida que a
mulher negra tiver, as barrei- ras do preconceito racial e do machismo
vão sempre prejudicar de algum modo suas vidas. A vida na cidade grande,
representada nas personagens de Cida, Dora e de Selma, apesar do anseio
desta última de viver no interior, implica em uma vida solitária. Cida,
na cena final do filme, desabafa para a irmã sobre o assunto.
Cida: “Essa vida me deu muitas coisas, mas me levou muitas outras.”; Ju: “É, tá na tua cara. Procuro nos seus olhos, não encontro mais aquela menina sonhadora.”; Cida: “É, fiquei diferente. Fiquei mais sozinha.”; Ju: “Eu não entendo, você é famosa, arrodeada de gente bonita… de homem boni- to.”; Cida: “Mas não tenho ninguém para dividir meus dias.”.
As relações de Dora e Selma com seus parceiros também implicam em
dificuldades quanto à car- reira profissional da primeira, e a cor de
pele da segunda. A história de Selma assemelha-se muito à perso- nagem
de Maria Ceiça da telenovela Anjo Mau, já citada anteriormente,
ou seja, o parceiro branco e o aborto do filho dos dois. Ju, por outro
lado, vive um romance durante toda a sua vida com Marquinhos (Rocco
Pitanga e Zózimo Bulbul), porém, depende financeiramente dos seus filhos
e viveu cuidando deles e do pai, no mesmo lugar onde nasceu. Em diálogo
com a irmã Cida, na mesma cena final, Ju desabafa: “Eu queria mais, Cidinha. Eu queria ter o meu próprio dinheirinho. Conhecer gente diferente… num lugar diferente.”.
O diretor Joel Zito Araújo procura dialogar com o público sobre as implicações do negro e da negra na mídia e na sociedade. O Filhas do Vento pode
ser entendido como uma resposta à sua análise (cf. ARAÚJO, 2004) sobre a
(não) participação afro-descendente na produção audiovisual brasileira.
Daí, pode-se entender o porquê de o filme sofrer, por vezes, a mesma
dificuldade de aceitação do grupo cultural que escolheu para
representar: a exclusão e o preconceito.
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