No estado brasileiro onde os afrodescendentes representam mais de 80% da população, uma onda de movimentos sociais se fortalece gradualmente na era pós-abolição da escravatura. Mais do que reivindicar direitos coletivos, ao longo dos anos, os grupos feministas de negras da Bahia têm se articulado para conquistar espaço e visibilidade como mulheres e como negras.
Passados exatos 125 anos da Lei Áurea, assinada em 13 de maio de 1888, essas baianas engajadas carregam duas bandeiras em uma mesma luta. São militantes que enfrentam, diariamente e duplamente, o racismo e o machismo que ainda fazem muitas reféns de desigualdades remanescentes do tempo da escravidão no Brasil, principalmente nas relações de trabalho.
Prova disso é o estudo Panorama do Trabalho Doméstico, elaborado a pedido da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Baseado na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD/ IBGE), o levantamento aponta que, dos 458 mil trabalhadores domésticos existentes na Bahia (2007), quase 79,2% são mulheres negras, 14,3% são mulheres não negras, 5,8% são homens negros e 0,7% são homens não negros.
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Em tempos de intolerância marcofeliciana, as militantes negras seguem na vanguarda das líderes quilombolas e continuam lutando por uma liberdade que possibilite o fim das disparidades salariais, do pouco acesso a níveis elevados de formação, do celibato involuntário e dos elevados índices de desemprego, miséria e violência.
Foi com esse pensamento que, em agosto de 2010, um grupo de baianas fundou o Odara - Instituto da Mulher Negra. A principal bandeira dessa organização feminista genuinamente afro é superar, em nível pessoal e coletivo, a discriminação e o preconceito, e buscar alternativas que proporcionem a inclusão sociopolítica e econômica das mulheres negras e de seus familiares na sociedade.
Valdecir Nascimento iniciou a militância no Movimento Negro (Foto: acervo pessoal)
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A coordenadora executiva do Odara, Valdecir Nascimento, explica que, no final dos anos 1990, as mulheres negras sentiram uma necessidade de se organizar em movimentos sociais específicos, que contemplassem as duas causas. "Os homens negros acham que nós devemos ser o baluarte da luta negra, mas eles é quem devem se projetar, e as mulheres brancas acham que a gente deve lutar no feminismo, mas a projeção é delas", criticou.
Aos 53 anos, Valdecir, que também é historiadora, iniciou a vida de militante no Movimento Negro há mais de três décadas. A coordenadora do instituto também já dirigiu o Ceafro, um programa de educação para igualdade racial e de gênero do Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia (CEAO).
"Nosso grande eixo hoje é o de sermos incluídas no processo de desenvolvimento econômico do País", deseja a militante, que considera a aprovação da chamada PEC das Domésticas uma vitória, ainda que tardia, para as brasileiras. A historiadora ressalta que essa maioria negra no trabalho doméstico não é uma exclusividade da Bahia, mas uma realidade predominante em toda a região Nordeste. "A gente saiu da senzala para cozinha", lamenta.
JOVENS NEGRAS - Apesar de não ser exclusivamente formado por negras, um outro movimento, composto em sua maioria por alunas da Universidade Federal da Bahia (UFBA), direciona suas lutas para a questão racial atrelada ao gênero. Criado em 2011, o Núcleo Negra Zeferina é uma representação da Marcha Mundial das Mulheres no território baiano.
"Por ser mulher, por ser negra, por ser pobre. Nós carregamos o poder de transformação social", acredita a integrante do núcleo, Anaíra Lôbo, que considera os desafios da luta das mulheres negras ainda maiores e mais difíceis que os do movimento unicamente feminista.
Além de articular as mulheres, com ênfase nas periferias da capital baiana, essas jovens vem ganhando cada vez mais destaque no enfretamento à violência sexual de gênero. "As mulheres negras têm três vezes mais chances de sofrer alguma violência sexual ao longo da vida do que mulheres as brancas", revelou Lôbo.
Nos últimos meses, o núcleo tem atuado incessantemente na denúncia contra os nove integrantes do grupo de pagode New Hit, acusados de estupro coletivo, no dia 26 de agosto de 2012. Duas adolescentes de 16 e 17 anos foram forçadas a ter relações sexuais com todos os músicos, no fundo do ônibus da banda, após um show realizado em Ruy Barbosa, a 321 Km de Salvador.
As mobilizações promovidas pelas zeferinas têm ampliado a repercussão sobre o Caso New Hit, como ficou conhecido, até para a esfera nacional. As pressões também contribuíram para o andamento da investigação. "Não deixaríamos passar. Somos mulheres. Mexeu com uma, mexeu com todas", defendeu Maíra Guedes, que também é militante do movimento.
Em outubro do ano passado, as feministas fizeram uma manifestação em frente à casa de veraneio do vocalista, Eduardo Martins, na praia de Guarajuba, em Camaçari, no Litoral Norte. Com o apoio de populares, as mulheres se basearam no escracho (forma de rechaçar os torturadores nas ditaduras do Chile e Argentina) e promoveram um ato para mostrar que 'naquele local residia um estuprador'.
As militantes também condenam o que definem como "processo de encarceramento das vítimas". Ou seja, os acusados aguardam o julgamento em liberdade enquanto as jovens tiveram que deixar o município onde viviam e estão sob um esquema de proteção que restringe o direito de ir e vir, para serem preservadas de ameaças, inclusive de fãs da banda. "Ele é famoso, é branco e muito rico. Poderia facilmente cair no esquecimento", especulou a militante.
O núcleo já promoveu audiências públicas sobre o caso e conseguiu mobilizar simpatizantes à causa para impedir a realização de shows dos músicos. As zeferinas prometem mais ações nos dias 3, 4 e 5 de setembro deste ano, quando haverá novas audiências de instrução e outras testemunhas serão ouvidas. "Enquanto não houver justiça, haverá escracho feminista", garante Lôbo.
Fonte: Neo 10
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