A análise crítica do discurso de relatos de mulheres, no Brasil e nos
EUA, que tiveram parto normal (vaginal) após uma ou mais cesáreas — o
chamado VBAC (sigla em inglês para Vaginal Birth After C-section) —
revela o resgate do universo feminino, o aumento do conhecimento sobre
si mesmas e seus corpos, além de gerar empoderamento. Os dados estão na
tese de doutorado da professora universitária Luciana Carvalho Fonseca,
defendida em novembro na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas (FFLCH) da USP, sob a orientação da professora Stella Esther
Ortweiler Tagnin.
Os discursos dos relatos revelam mulheres seguras, felizes,
satisfeitas e em paz com o próprio corpo, e que sofreram profundas
transformações — todas muito positivas — por conta do VBAC. “Ocorre uma
reconstrução da própria biografia: elas reconhecem que a cesárea
anterior foi desnecessária e, com isso, vão se fortalecendo. Há um
empoderamento que as tornam mais fortes”, conta. Luciana encontrou
palavras como “renasci“, “guerreira“, “mulher maravilha“, além de frases
como: “Parir é como escalar o Everest“, “Parir é como correr um
maratona”, “Eu pari quando o mundo todo disse que eu não conseguiria” ou
“Me sinto uma rainha“, entre outras.
“No Brasil, o número total de cesáreas aumentou 400% nos últimos 40
anos: de 14,5% em 1970, para 52% em 2010, sendo que, apenas no setor
privado, as cesáreas respondem por 88% dos nascimentos. Nos Estados
Unidos, cerca de 75% dos nascimentos são por parto normal, contra 25% de
cesáreas. A recomendação da Organização Mundial de Saúde é que a taxa
de cesárias fique entre 10% e 15%”, informa Luciana.
Segundo a pesquisadora, a literatura científica mostra que o parto
normal é possível após cesárea. “O risco de haver uma ruptura uterina é
de aproximadamente 0,7%”, esclarece. Entretanto, essas mulheres ouvem de
seus médicos que os riscos são muito altos: as informações e
orientações que elas recebem as direcionam para desistir do parto
normal.
Como querem muito o VBAC, elas começam a pesquisar e a se informar e
percebem que estão diante de dois discursos antagônicos: um é o do
ginecologista/obstetra, baseado em sua experiência pessoal e que as
direciona para a cesárea; e o outro baseado em evidências científicas da
academia, que aponta o VBAC como possível.
Luciana analisou o relato de parto normal após cesárea encontrados na
internet, mas apenas aqueles em que as próprias mulheres relatavam o
acontecimento, descartando entrevistas ou relatos escritos por outra
pessoa. Ela selecionou 93 relatos de brasileiras e 101 de estadunidenses
e analisou a representação que essas mulheres fazem de si e dos demais
sujeitos que participaram de sua experiência de parto: “eu”, “bebê”,
“marido”, “doula”, “médico”, “anestesista”, “enfermeira”, “parteira” e
“obstetriz”. Em seguida, selecionou, com base em um software de
processamento de grandes quantidades de texto, para cada um desses
sujeitos, as palavras-chave de maior significância estatística (veja a lista completa neste link).
A partir dessas palavras, a pesquisadora chegou à representação que as
mulheres fazem de si e das demais pessoas envolvidas na experiência de
parto.
Médico “fofo”
No caso de “médico”, por exemplo, a palavra de maior significância
encontrada no discurso de brasileiras foi “fofo/a” e “fofinho/a”, mas
num sentido completamente pejorativo. Um dos relatos diz o seguinte: “Ao
continuar o acompanhamento com meu ginecologista fofinho eu acabaria
novamente em uma mesa de cirurgia pois ele não compraria o meu parto.
Ele novamente deixaria a gente chegar na porta do gol e depois chutaria
do jeito que fosse melhor PARA ELE e não para mim.”
Quanto às diferenças culturais, no Brasil, o apoio dos maridos foi
exaltado. Já nos EUA, o parto é um acontecimento ligado mais ao mundo
feminino e das parteiras. Porém, em ambos os países os maridos funcionam
como guardiões do plano de parto (instruções da mulher para a equipe
informando como ela quer que ocorra o parto). No Brasil, muitas cesáreas
são agendadas e ocorrem antes de a mulher entrar em trabalho de parto.
“Já nos EUA, a mulher costuma entrar em trabalho de parto. Mas, pelos
relatos, percebemos que há uma certa impaciência e são feitas muitas
intervenções para acelerar o processo e nisso está a origem da cesárea
anterior”, diz. No Brasil, os discursos também revelam machismo em
relação ao sexo do bebê: “menininha“, “delicadinha“, “rosinha” e
‘pequenininha” para meninas, e “grandão“, “meninão” e “sacudo”
(testículos grandes) para os meninos. Isso não foi verificado nos
relados estadunidenses.
Luciana lembra que, até a década de 1940, a grande maioria dos partos
acontecia em casa, com parteiras. Todo o conhecimento sobre o que se
passa durante o trabalho de parto era passado de mulher para mulher: da
avó para a mãe e depois da mãe para a filha. A mulher era o principal e
mais importante personagem do parto. Atualmente, o parto saiu da esfera
feminina e foi para o universo masculino: o parto é dos médicos, e a
mulher tornou-se apenas coadjuvante.
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