Dois passos para a direita, um para a esquerda, dois para a esquerda, um para a direita. A marcação é feita com tambores sem cravelhas de metal, que foram afinados no calor de uma lâmpada improvisada. Quem dança é Gabriel, de 5 anos. A roda é formada pelas cores dos panos floridos das saias das coreiras. No centro, uma delas carrega a imagem de São Benedito na cabeça. O tambor de crioula mistura-se com as vozes e as pungadas ou umbigadas.
O tambor de crioula do Maranhão é considerado patrimônio imaterial do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) desde 2007. A estimativa é que existam mais de 200 tambores em todo o estado. Desses, 130 foram registrados pelo projeto Salvaguarda do Tambor de Crioula. As manifestações ocorrem o ano todo, sem data definida, mas a maior ocorrência é no carnaval e nas festas de São João.
A dança de origem africana tem a história contada de maneira distinta. Para alguns, veio da África, já como uma manifestação. Outros, como Lúcia Franco, coreira do tambor de crioula Arte Nossa, acredita que é algo que começou no Brasil. “Era tocado pelos coreiros, na época, escravos, para avisar os quilombos vizinhos que iria ter fuga de negros. Eles tocavam e dançavam”. Na vida de Gabriel, a origem é certa: “Aprendi com meu pai”.
No dia em que a reportagem acompanhou ensaio, Gabriel estava com o bisavô, Manoel Ferreira, o mestre Manelão do tambor Tijupá, da área rural de São Luís. Manelão,74 anos, tem 22 bisnetos. Faz questão de ensiná-los o que sabe. “Eu comecei com essa idade, com uns 5 anos. Ia para pertinho do meu pai, ele ia tocando e eu balançando. Quando chegava em casa, ele me dizia: ‘Meu filho, vai ser um tocador’.
Com 14 anos, já cantava por minha conta e tomava conta do grupo dos outros”, diz o bisavô. “Eu tô fazendo como meu pai fez comigo, para quando eu morrer, porque quem tá com 74 anos não está esperando mais nada, está? Para ele, poder dizer que foi o avô que ensinou o tambor”.
A tradição é repassada na infância, mas nada impede que adultos passem a fazer parte das rodas. Os papéis são bem definidos: homens tocam os tambores e cantam, as mulheres dançam e cantam. O tambor é dedicado sempre a São Benedito, o santo protetor dos negros.
E foi pelas mãos do santo que Lúcia começou a dançar. Já adulta, assistia a uma apresentação quando foi convidada a entrar na roda. Com vergonha, negou o pedido e a saia que lhe ofereceram. A dona do tambor, Terezinha Jansen - incentivadora da cultura popular maranhense - mostrou-lhe uma imagem do santo e apelou: “Agora faça essa desfeita para ele”. Lúcia prontamente entrou na roda: “E nunca mais saí”.
A história de Maria José Melonio é parecida com a de Lúcia. Entrou para o tambor já adulta pelo convite do compadre, mestre Apolônio, dono do tambor de crioula Prazer de São Benedito. Dos 73 anos de idade, 40 foram no tambor. Quando precisa de ajuda, ela recorre a São Benedito. “Quando a gente pede com fé e sabe ter paciência, a gente consegue”, diz. Perguntada quantas graças já obteve, a resposta é direta: “Várias”.
Quando se obtém uma graça, faz-se um agradecimento, uma roda de tambor. Começa com uma ladainha de agradecimento, depois serve-se café e bolo de tapioca. O tambor dura a noite toda. No dia seguinte, pela manhã, é servido um cozido de carne de porco, para dar força aos coreiros e coreiras.
Além de preservar a tradição, os tambores exercem papéis sociais nas comunidades onde estão inseridos. No tambor de crioula Prazer de São Benedito, cuja sede fica no bairro Liberdade, na periferia, há oficinas de artesanato, onde os moradores confeccionam os utensílios que usam nas rodas. “A intenção é transformar o produto cultural em uma geração de trabalho e renda. É a economia da cultura”, diz a coreira e coordenadora do grupo, Nadir Cruz. Ela explica que, do que recebem, 60% ficam para o autor ou autora da peça, 20% para a casa e 10% para capital de giro.
Para preservar a manifestação, no ano passado, no dia 18 de junho, Dia Nacional do Tambor de Crioula, foi lançado o projeto Salvaguarda do Tambor de Crioula. O projeto terá a duração de pouco mais de um ano e termina em dezembro deste ano. Entre as atividades, estão o registro de grupos, a realização de oficinas com crianças e adultos, a produção de um documentário e gravação de três CDs.
A Salvaguarda recebeu R$ 500 mil do governo federal e R$ 150 mil do governo do estado. Por enquanto, o projeto abrange apenas São Luís. A intenção é renová-lo para que chegue ao interior do estado.
“O ritmo é bastante particular, não tem nada parecido, acho que é isso que mantém a tradição”, diz o coordenador técnico do Comitê Gestor de Salvaguarda do Tambor de Crioula, Lázaro Pereira. “O ritmo vem dos africanos, dos escravos, e hoje está aí com poucas mudanças, até porque existem essas adequações”, explica, citando entre as mudanças a lâmpada usada para aquecer e afinar os tambores. Tradicionalmente, esse procedimento é feito na fogueira. “Para se manter a tradição, a gente tem que estar junto com a modernidade”.
Fonte foto: EBC
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