Há tempos o movimento de mulheres vem
pautando a necessidade da legalização, fazendo o debate ora pela
autonomia do corpo feminino, ora pelos direitos sexuais e reprodutivos.
Neste texto entretanto iremos discutir um outro olhar acerca desse tema,
que é o da violência do Estado contra as mulheres negras. Antes disto, é
importante colocarmos alguns pontos importantes, que já vem sendo
debatidos há tempos, mas é sempre importante relembrarmos. Em primeiro
lugar, a legalização não se constitui em um incentivo ao mesmo e nem na
anulação da necessidade de um amplo sistema de políticas públicas
voltadas ao planejamento familiar, o aborto é o ultimo estágio do debate
sobre a questão reprodutiva, é a “ponta da lança” .
É importante referenciarmos que o
Estado brasileiro, garante em sua constituição, o direito à vida e à
saúde como inalienáveis, que não podem ser negados a ninguém, pela sua
cor, raça, gênero ou orientação sexual. É dever então, do Estado
Brasileiro, zelar pelo bem-estar de todos os seus cidadãos e também de
suas cidadãs, atentando-se as demandas especificas de saúde possuída por
cada grupo. Isto é que se chama de princípio da equidade, que a grosso
modo pode ser resumido como, tratar os iguais como iguais e os
diferentes como diferentes.
É responsabilidade portanto, do
Estado, garantir que todas as mulheres tenham o direito de exercer
livremente a sua sexualidade, e de ser assistida nesse livre exercício.
Sendo assim, quando o Estado brasileiro mantém o aborto na ilegalidade
está fugindo de suas funções, cometendo assim uma violência que é
sexista e assume um caráter genocida quando se trata daquela que é mais
atingida e mais vulnerável nesses casos, que é a mulher negra.
Esse é um debate do qual os diversos
movimentos de mulheres, precisam se apoderar, tirando a questão do
aborto do âmbito privado, trazendo para a sociedade a compreensão de que
a negação do Estado em dar assistência a uma mulher em situação de
abortamento, seja espontâneo ou induzido, constitui em grave desrespeito
aos direitos humanos, trazendo assim o debate para o campo da
institucionalidade.
Quando falamos que o Estado comete
violência, isto se dá pelo fato da ilegalidade se constituir em um
cerceamento da autonomia e liberdade do corpo feminino. Além disso,
mantendo o aborto na ilegalidade, o Estado brasileiro demonstra que está
sendo pautado pelo fundamentalismo religioso ao invés de zelar pela
vida de suas cidadãs, em especial suas cidadãs negras. Nega assim as
estatísticas que mostram a dura realidade de que a atual situação não
impede os abortos de acontecerem, mas simplesmente relega a morte e ao
esquecimento as mulheres, em especial as mulheres negras mais uma vez.
No que tange às mulheres negras, que
pela ação do racismo já são consideradas sub-cidadãs, ocorre uma
situação de “marginalização” no âmbito do aborto. As mulheres brancas e
ricas recorrem a clínicas especializadas e com plena assistência médica,
enquanto as mulheres negras recorrem a métodos alternativos, que muitas
vezes colocam em risco a sua vida.
A pesquisa Itinerários e Métodos do Aborto Ilegal
em cinco capitais brasileiras, realizada por Debora Diniz e Marcelo
Medeiros, traz um pouco do panorama de como a mulher negra está
vulnerabilizada e exposta à violência do estado em sua negação de
assistência. Inclusive é importante alertarmos para a necessidade de
novas pesquisas em relação a esta temática com recorte racial. Isto
garante visibilidade institucional a quem é mais vitimada pelos efeitos
da ilegalidade.
Os mesmos alertam que a maioria das
mulheres que abortam são mulheres negras, com idade até 19 anos, com
pelo menos 1 filho. O aborto normalmente começa com a junção de chás e
do Cytotec, remédio originalmente usado para combater ulcera mas que
possui como efeito colateral o abortamento. Apesar da pesquisa
referenciar o medicamento como sendo o principal meio de abortamento,
são recorrentes os relatos de métodos mais invasivos como agulhas de
crochê entre outros artifícios utilizados.
A pesquisa em questão, também
referencia a ausência de exames diagnósticos da gravidez. Ou seja,
muitas dessas mulheres acabam por identificar a gravidez através dos
sinais corpóreos tradicionais, em especial o atraso da menstruação, esta
ausência tanto se dá pelo medo de ser identificada pelo aparelho do
estado, caso futuramente opte pela interrupção da gravidez, bem como
pela dificuldade financeira de garantir os exames básicos como o BHCG e a
Ultrassom.
O diagnóstico precoce, bem como a
adoção de métodos não-seguros, leva à maioria destas mulheres a
internação em grandes hospitais para a finalização do aborto através da
curetagem, sendo que para cada mulher branca internada para finalizar o
aborto, outras 3 mulheres negras foram também internadas. A chegada ao
hospital para realizar os procedimentos finais dá inicio a uma outra
etapa de violência, também subsidiada pelo Estado, também alimentada
pela ilegalidade que é a violência obstétrica. Muitas dessas mulheres
relatam o medo de serem denunciadas a policia, a falta de assistência
médica e principalmente a falta de sensibilidade de profissionais que
muitas vezes imbuídos de convicções religiosas e estereótipos raciais,
acabam por fragilizar ainda mais esta paciente que normalmente chega
desacompanhada de seus parceiros. (A pesquisa mostra que a maioria das
mulheres negras entrevistadas, chegaram ao serviço publico sem os
companheiros.)
Ou seja, quando o Estado diz não à
legalização, na verdade está jogando para a inseguridade inúmeras
mulheres que deveriam ter o direito de escolher o que fazer ou não com o
seu corpo. Mulheres essas que acabam submetidas à intervenção machista
do fundamentalismo dentro da estrutura do Estado, em especial do
parlamento brasileiro, ostensivamente ocupado por homens pertencentes
aos setores conservadores de nossa sociedade, além de muitos
companheiros de esquerda que não compreendem o seu papel enquanto
legisladores de representar TODA sociedade brasileira. E as mulheres
fazem parte dessa sociedade.
Ao tratarmos da não-legalização como
violência contra a mulher, colocamos este como uma política genocida
contra todo o povo negro, já que a morte de cada uma dessas mulheres
desestabiliza toda uma geração, se estendendo aos pais, aos filhos e
filhas já existentes, companheiros,e principalmente as mães. Legalizar o
aborto, no Brasil e diante das circunstâncias colocadas, é dar opções
as mulheres e o direito de decidir, sem precisar morrer por esta escolha.
Fontes :Ag. Patricia Galvão / População negra e Saúde
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