Professora Thula Pires |
O assassinato de Marielle
Franco chocou o Brasil e o mundo não somente pela violência da ação, mas pela
trajetória de vida e política da vereadora do PSOL-RJ, porta-voz das minorias.
A AFP entrevistou quatro
combativas mulheres negras no Rio de Janeiro para saber o que mudou nas suas
vidas de lá para cá e como elas seguem suas lutas após Marielle ser morta com
quatro tiros em 14 de março, em um crime ainda sem punição.
Cada uma delas representa parte
das bandeiras levantadas pela vereadora: as denúncias de violência policial,
contra o racismo, a favor do feminismo e da comunidade LGBT e de uma política
mais próxima da população.
- Buba, vivendo em protocolo de
segurança -
"Está sendo muito difícil.
Parece que toda minha vida está parada", lamenta Buba Aguiar, secando as
lágrimas, quando vê uma reportagem sobre Marielle na televisão.
Desde que a vereadora foi
morta, a midiativista do coletivo Fala Akari - crítica vigorosa da truculência
policial e da intervenção federal no estado - precisou deixar a favela de
Acari.
Estudante de Ciências Sociais e
funcionária de uma ONG internacional que prefere não identificar, Buba, de 25
anos, precisou transformar sua rotina quando, horas após a morte de Marielle, a
imprensa divulgou um vídeo em que ela denuncia a violência policial do 41º BPM
na favela.
Os comentários do Fala Akari
sobre o "batalhão da morte", como é conhecido, tinham sido
reproduzidos pela vereadora em sua página no Facebook quatro dias antes de
morrer. Rapidamente, isso foi apontado como um dos possíveis motivos de sua
morte, embora a polícia também investigue o envolvimento de milícias da Zona
Oeste no crime.
Ela agora vive em
"protocolo de segurança", com uma rotina sigilosa, repleta de
restrições, como uso de boné e cobertura das tatuagens, apoiada exclusivamente
por ONGs de direitos humanos e pelo coletivo que integra.
Apesar do susto e das ameaças
posteriores, a experiência de Buba na favela, onde perdeu vários amigos vítimas
de violência, não lhe permite economizar críticas à PM. "Eu não vejo o
policial como despreparado, pelo contrário. Ele é preparado para dar
continuidade à política oficial de assassinar pretos, pobres e todas as
populações periféricas", resume.
A jovem hoje convive com
ameaças constantes entreouvidas na rua, ou repassadas através de conhecidos de
Acari.
"A situação vai
piorar", prevê. "Vai ser difícil, vai ser árduo. Mas vamos continuar
como fazíamos no passado. Seguir lutando, sem se amedrontar. A gente tem que
honrar todo esse sangue que foi derramado", afirma.
- Marina, rueira que levanta
bandeiras -
"Eu falo o que eu acho/
Levanto bandeiras": o verso da música "Rueira", que dá nome ao
segundo álbum da cantora carioca Marina Íris, sintetiza sua trajetória. Na rua
ou no palco, a cantora, de 34 anos, não se esquiva de se posicionar sobre
questões de gênero, raça e classe.
"A música tem a potência
de falar com muita gente, é um instrumento para mudar o contexto social. Eu,
que milito, não me sinto na obrigação de só cantar músicas militantes, mas me
sinto útil quando consigo alcançar as pessoas fazendo essas duas coisas",
explica.
Na música "Meio a
meio", Marina, que é lésbica, canta sobre a rotina de um casal de mulheres
que divide uma cama de solteiro. "Canto a luta contra as opressões de
maneira geral, mas com simplicidade e humanização. Não é caricato".
Essa também foi a tônica do
projeto "É Preta", em que Marina divide o palco com quatro cantoras
negras: Simone Costa, Nina Rosa, Maria Menezes e Marcelle Mota. "Nosso
foco está na diversidade das trajetórias de cada uma, porque já há um
estereótipo da mulher negra", ressalta.
Na militância das ruas, Marina
participou ativamente, fazendo panfletagem e jingle da campanha de Marielle. As
duas se conheceram fora do ambiente político, nas rodas de samba da praça São
Salvador, que a vereadora costumava frequentar, como fazia em outros eventos
culturais nas ruas da cidade.
Para a cantora, a eleição de
Marielle foi importante não apenas por suas origens e causas defendidas, mas
por levar diversidade à política institucional.
"A execução da Marielle
representa a tentativa de implodir um caminho que segue para a diversidade,
para uma sociedade mais igualitária. Mas esse símbolo que a Marielle virou é o
que nos dá força", diz.
- Thula, um corpo negro na
Universidade -
Thula Pires é a única
professora negra do departamento de Direito da Pontifícia Universidade Católica
(PUC), onde Marielle se formou em Sociologia.
Apesar de ter passado 15 de
seus 38 anos na academia, ela ainda se sente estranha, como se esse não fosse
seu lugar. Ela diz se sentir sempre "em trânsito" entre sua realidade
em São Gonçalo, onde cresceu e vive, e o ambiente rico e predominantemente
branco da universidade.
"A luta não é pela
igualdade. A gente está numa luta pela nossa igual humanidade".
Embora a universidade tenha se
transformado com cotas raciais e a criação do Prouni, Thula garante tentar,
diariamente, que sua presença nas salas de aula não sirva apenas para
"disputar narrativas", mas, principalmente, como "denúncia da
ausência de outros corpos pretos neste mesmo espaço".
"Qual é a lógica desse
estranhamento? Eu vivo num país onde mais da metade da população é como
eu!", protesta.
Marielle, que reforçava a
necessidade de políticas de acesso dos negros à universidade, e Thula se
conheceram na PUC há dois anos e compartilhavam amigos e lutas comuns. O
assassinato da vereadora deixou a professora "devastada".
"A gente perdeu muito,
inclusive o medo", garante.
Se estivesse na academia, sua
resposta teria sido clara e direta: "Sim, é uma questão de tempo".
- J. Lo, militante até nas
tatuagens -
Um mês depois de Marielle ter
sido assassinada, a multiartista J. Lo Borges, de 30 anos, ainda não se
conforma com sua morte. Carioca de Irajá, na Zona Norte, e militante lésbica,
ela encontrou na vereadora uma representação política que sequer imaginava.
"Eu nem precisei ir atrás
dela", lembra a grafiteira da rede feminista de artes urbanas NAMI. Ela
fazia parte da Coletiva Visibilidade Lésbica quando foi convidada pelo gabinete
de Marielle para participar de uma reunião na Câmara dos Vereadores no ano passado.
"Quando cheguei, tinha
várias mulheres de vários coletivos. Foi depois disso que fundamos a Frente
Lésbica do Rio de Janeiro. Se não tivesse Marielle, a Frente não
existiria".
Apesar de ser formada em
História e ter cursado Letras, foi nas artes que J. Lo se encontrou
profissionalmente.
"Hoje, não consigo falar
em nenhuma arte sem o recorte político. Como tatuadora, não tatuo homens,
pesquiso processos para peles pretas e cobro preços mais baixos para negras.
Como grafiteira e artista plástica, meu principal tema é sempre a visibilidade
lésbica", conta.
O único ponto de contato que os
grupos em que milita têm com o sistema partidário atualmente é a vereadora
Talíria Petrone, do PSOL de Niterói.
Após a morte de Marielle, a
artista homossexual, negra e periférica se sente mais vulnerável que nunca -
especialmente num país que matou o dobro mulheres lésbicas em 2017 em relação a
2016, segundo dados do Dossiê sobre Lesbocídio no Brasil.
"Como eu sempre tive muito
medo, aprendi a me aproveitar do racismo das pessoas. Desde que tenho 15 anos,
as pessoas se afastam de mim na rua achando que vou assaltar. Uso isso para me
proteger".
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