Por DW publicação de janeiro 2019
Expressão, que não tem base
acadêmica, ficou popular no Brasil na boca de Bolsonaro e seus seguidores. Ela
tenta desqualificar pesquisas que ajudam a corrigir desigualdades e
discriminações no cotidiano.
A ministra Damares
Alves iniciou seu mandato à frente da nova pasta da Mulher, Família e
Direitos Humanos gerando controvérsia, ao comemorar uma suposta "nova
era" no país: meninos vestiriam azul, e meninas, rosa. Ao
se justificar, disse que a frase seria uma "metáfora" ao que ela
chama de "ideologia de gênero".
A expressão não é nova, mas
ganhou destaque durante a campanha eleitoral passada, sendo popularizada pelo
presidente Jair Bolsonaro e seus filhos. Muito antes de se tornar candidato, o
ex-deputado já havia incorporado o termo no seu discurso político e se tornado
um de seus principais propagadores no país.
O termo, porém, não possui base
acadêmica. A suposta "ideologia de gênero" surgiu como uma
expressão pejorativa para desqualificar os estudos de gênero, um campo
científico interdisciplinar que analisa e investiga todo o tipo de questão
relacionada ao gênero. Isso inclui, por exemplo, processos sociais e relações
de poder envolvendo homens e mulheres, além da própria construção do gênero e
suas representações.
"Os estudos de gênero
surgiram porque a ciência predominante pesquisava somente a história e a vida
dos homens. Assim, ela não era objetiva, mas unilateral. Esse campo se ocupa de
questões, temas e pessoas que eram frequentemente esquecidas ou omitidas. Ao
ampliar a perspectiva científica, contribuiu para aumentar a
objetividade", afirma Henning von Bargen, diretor do Instituto Gunda
Werner para Feminismo e Democracia de Gênero, ligado à Fundação Heinrich Böll.
Originado nos estudos da mulher
que se desenvolveram nos EUA a partir da década de 1970 com o avanço do
movimento feminista, os estudos de gênero começaram a tomar forma a partir de
meados dos anos 1980. Sua abordagem científica parte do princípio de que gênero
é principalmente uma construção social, e não restrito apenas ao sexo
biológico.
Ou seja, a sociedade, ao impor
padrões que caberiam ao homem e à mulher, acaba determinando o que é entendido
como característico do masculino e do feminino. Um exemplo seria o azul como
cor de menino e rosa de menina ou que meninas devem brincar de bonecas e meninos
de carro.
Os estudos de gênero não negam
fundamentalmente o sexo biológico, mas rejeitam o entendimento somente
biológico do gênero. Eles pesquisam, entre outras coisas, essa construção de
categorias de diferenciação de pessoas, que são mutáveis. No início do século
20, por exemplo, rosa era a cor dos meninos, e azul, das meninas. Esses
padrões sociais e culturais geram, sobretudo, desigualdades e discriminações no
cotidiano, que também são analisadas neste campo de pesquisa.
"O gênero é um conceito analítico
que não tem relação com uma concepção de mundo. É uma categoria de análise para
observar melhor e entender melhor a sociedade, pois ela se organiza muito nas
diferenças entre os gêneros", acrescenta Regina Frey, do Instituto para
Assistência Social e Pedagogia Social.
Cruzada antigênero
Com a expansão e consolidação
deste campo científico, que supostamente estaria ameaçando princípios
religiosos, foi lançada uma contraofensiva católica em defesa de sua doutrina e
do modelo tradicional de família. Em 1998, numa nota da Conferência Episcopal
do Peru, aparece pela primeira vez a expressão "ideologia de gênero".
Segundo o pesquisador da
Universidade de Brasília (UnB) Rogério Diniz Junqueira, no Brasil, religiosos
começaram a usar a expressão em 2011. Mas foi somente em 2014 que o termo
ganhou destaque ao aparecer nos protestos para a exclusão das expressões gênero
e orientação sexual dos planos de educação. A partir de então, "ideologia
de gênero" se tornou uma categoria de mobilização política.
"A ‘ideologia de gênero’ é
uma invenção, um artifício retórico. Não pode ser confundido com um termo
científico. A sua elaboração jamais seguiu princípios e preocupações de ordem
científica. O termo aflorou no âmbito de um projeto de poder:
decidiu-se utilizar o termo que melhor funcionasse politicamente segundo
os objetivos dos atores que fomentam essa ofensiva reacionária", avalia
Junqueira.
Mas não foi somente no Brasil
que o termo ganhou popularidade. Diversos grupos políticos e religiosos
ultraconservadores iniciaram em vários países uma verdadeira cruzada
antigênero, contra não somente a igualdade de gênero e o feminismo, mas também
contra a diversidade sexual e de identidade.
"Por trás da mobilização
antigênero estão diferentes atores, organizações, partidos, redes religiosas
fundamentalistas, que são classificados no espectro político de centro a
extrema direita. Com a expressão ‘ideologia de gênero’ se voltam contra avanços
da democracia liberal e de uma sociedade aberta", argumenta Von Bargen.
"Quem questiona o gênero
deveria explicar por que ele é negativo e por que homens e mulheres não
deveriam ter os mesmo direitos. Isso não é nenhum um pouco explicado com o
termo ‘ideologia de gênero’", acrescenta Frey, que coordenou o segundo
relatório sobre equiparação do governo da Alemanha.
Políticas de gênero
Apesar da contraofensiva
político-religiosa, os estudos de gênero contribuíram para compreensão de
diferenças e desigualdades geradas por essas construções sociais e, desta
maneira, auxiliaram no desenvolvimento de políticas públicas para promover a
igualdade de gênero e combater a discriminação.
Na União Europeia, desde 1999,
a perspectiva de gênero passou a ser um ponto central no desenvolvimento de
políticas. Esse conceito, que ficou conhecido como Gender Mainstreaming (transversalização
de gênero), busca alcançar a equiparação ao pensar nos impactos que decisões
políticas e estruturais causarão para homens e mulheres e como aumentar a
igualdade de oportunidades para todos os sexos.
"O objetivo da Gender
Mainstreaming é a criação da igualdade de oportunidades efetiva. Essa
política não compreende o homem e a mulher como grupos homogêneos, mas leva em
conta que dentro desses grupos há uma diversidade de situações de vida e
necessidades", afirma Von Bargen.
Frey destaca que o Gender
Mainstreaming não significa que mulheres e homens devem ser iguais e
que não busca um reajuste no comportamento, mas a equiparação dos direitos. Ao
pensar nos impactos de políticas percebendo e levando em conta as diferenças entre
os gêneros, o Estado evita aumentar as desigualdades em direitos e
oportunidades.
"Trata-se de estabelecer
uma nova forma de pensar sobre todos os níveis que integra o aspecto
equiparação como objetivo parcial substancial na política. A categoria gênero
não levanta apenas a questão da igualdade de gênero, mas é um fator fundamental
para a solução de problemas econômicos, sociais e políticos", ressalta Von
Bargen.
Entre medidas resultantes deste
conceito fazem parte projetos para igualar o acesso a cargos de chefia e
políticos, de equiparação salarial e de combate à violência sexual.
Nenhum comentário:
Postar um comentário