(Foto: Agência O Globo / Márcia Foletto) |
O número é o dobro do que era estimado: a tese é baseada em banco de dados criado pela Universidade de Emory, em Atlanta
Entre 1500 e 1856, a cada cinco pessoas no mundo que foram
escravizadas, uma colocou os pés no Rio de Janeiro. Foi na região do
Porto, onde hoje estão as avenidas Venezuela e Barão de Tefé, que
atracou boa parte dos navios negreiros vindos da África, trazendo,
inclusive, corpos de quem não resistiu à viagem. Por muito tempo,
imaginou-se que pouco mais de um milhão de escravos desembarcaram na
cidade — e mais 2,6 milhões teriam sido levados para outros pontos do
litoral brasileiro. Agora, estudiosos afirmam que o número relativo ao
Rio é muito maior que o estimado por vários historiadores. A tese é
baseada em um minucioso banco de dados criado pela Universidade de
Emory, em Atlanta, nos Estados Unidos: o arquivo reúne registros
portuários feitos ao longo de três séculos e meio. O trabalho está
hospedado no site slavevoyages.org e ganhará,
dentro de algumas semanas, tradução para o português pela Casa de Rui
Barbosa, em Botafogo. Segundo o novo levantamento, cerca de 2 milhões de
escravos chegaram ao Rio.
— O cálculo anterior, adotado por vários historiadores, era de
autoria de Maurício Goulart, que publicou “Escravidão africana no
Brasil’’, em 1949. Na obra, ele afirma que o Brasil recebeu 3,6 milhões
de escravos. A estimativa de desembarque de pouco mais de um milhão no
Rio foi baseada em registros feitos na região do Cais do Valongo entre
1758 a 1831. Houve outros pontos de desembarque no estado, e levantamos
documentos referentes ao transporte de escravos em oito idiomas, datados
de períodos anteriores e posteriores àquele de 73 anos que, até então,
era o único considerado por estudiosos. Agora, temos um número mais
preciso — diz Manolo Florentino, único brasileiro que participou do
projeto. — Na pesquisa da Universidade de Emory, 90% dos dados relativos
à Região Sudeste se aplicam ao Rio, principal porta de entrada de
navios negreiros no país.
No estudo, foram catalogadas 35 mil viagens, que revelam um fluxo de
10,7 milhões de escravos em todo o mundo. Pesquisadores checaram
documentos de vários países, incluindo Estados Unidos e Inglaterra, além
do próprio Brasil e de nações do continente africano. Muitas vezes, não
havia registro de chegada de um navio negreiro ao Rio, mas sua partida
rumo à cidade estava documentada, por exemplo, em Portugal. E, além do
Cais do Valongo, Copacabana e Botafogo e outros pontos do Centro
serviram como locais de desembarque, mesmo que em escala pequena.
De acordo com a pesquisa, cerca de 4,8 milhões de escravos chegaram
ao litoral brasileiro. Outro número que chama a atenção, divulgado pela
primeira vez, é o de total de vidas perdidas nos deslocamentos entre
continentes — pelo levantamento da Universidade de Emory, cerca de 300 mil escravos morreram a caminho do Rio.
Os números da pesquisa podem ser ainda maiores. Estamos preparando
uma atualização para os próximos anos — afirma o historiador David
Eltis, coordenador do trabalho.
Interessados podem acessar o site do projeto e, por meio de recortes
históricos, pesquisar os períodos mais intensos do tráfico de escravos.
Nos três primeiros séculos da colonização portuguesa, por exemplo, a
Bahia recebeu 15% a mais de escravos que o Centro-Sul (na época, o
Sudeste estava inserido nessa região). O panorama mudou depois de 1763,
quando o Rio se tornou sede do governo geral.
O historiador Marcus Dezimone, professor da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (Uerj), explica que o apogeu da produção de ouro na
capitania de Minas Gerais, em meados do século XVIII, fez o Rio se
tornar um lugar estratégico para receber escravos da África e enviá-los
às minas:
— Tínhamos uma ideia da época em que o Rio ultrapassava a Bahia em
número de escravos, mas a pesquisa da universidade americana é
importante porque apresenta clareza sobre esse perído. A partir da
segunda metade do século XVIII, o número de escravos recém-chegados da
África cresce no Rio e se estabiliza na Bahia. Nenhum lugar do Brasil
servia tão bem à recepção de escravos como a cidade.
Os países que mais enviaram escravos ao Rio foram Congo e Angola — no
século XVIII, chegaram 720 mil. Depois de 1780, com o declínio da
atividade mineradora no Brasil, boa parte deles foi levada para o Vale
do Paraíba, no interior do estado, onde, mais tarde, teve início uma
grande expansão das lavouras de café.
A pesquisa também traz um importante esclarecimento sobre a
escravidão no século XIX: o Rio importou mais escravos do que Cuba para o
trabalho nas lavouras de café. Entre 1831 a 1840, a estimativa é que
desembarcaram por aqui 239 mil, contra 186 mil na ilha. O escritor e
pesquisador Tâmis Parron, autor de “A política da escravidão no Império
do Brasil’’, elogia o trabalho e destaca que, antes, esse fluxo só era
dimensionado por questões geográficas.
— As análises sempre penderam para o Rio pela posição da cidade em
relação ao continente africano. Era mais barato para o traficante de
escravos chegar ao porto carioca do que ir para Cuba — diz Parron.
‘LEI PARA INGLÊS VER’
Outro período que carecia de informações mais detalhadas sobre a
chegada de escravos ao Rio era o pós-1831 — ano de criação da Lei Feijó,
que proibia o tráfico negreiro no Brasil. Pesquisando o site,
constata-se que, num primeiro momento, a iniciativa deu resultado. Em
1831, chegaram 900 escravos à cidade, contra 31 mil um ano antes. No
entanto, a partir de 1832, voltou a um ritmo galopante. Com a pressão
britânica pelo fim da exploração humana, surgiu a expressão ‘‘lei para
inglês ver’’. Entre 1835 e 1850, aproximadamente 564 mil escravos
chegaram ao Rio ilegalmente, de acordo com a Universidade de Emory.
Ao mesmo tempo em que o Rio ganha um importante banco de dados para
entender melhor seu passado, a cidade vive a expectativa de ver o Cais
do Valongo transformado em Patrimônio Cultural da Humanidade. O
antropólogo Milton Guran coordena uma equipe multidisciplinar que, em
setembro, enviará para a Unesco um dossiê para a candidatura.
— No ano em se completam 450 da fundação da cidade, damos um passo na
reconciliação com nossas raízes. O Rio nasceu indígena e ganhou batismo
português, mas sua base étnica é composta pela negritude, que foi
fundamental para nossa formação cultural.
Fonte e texto : O Globo Renan França
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