Por Giulia Ebohon e Ana Julia Gennari
Mulher Negra. Cada uma dessas palavras cria uma realidade para
aqueles a quem se referem. Essa realidade não é estática, se materializa
em união com todo o contexto social e histórico em que estamos
inseridos. Define, sobretudo, o modo como as relações irão se
estabelecer neste ambiente.
Ser mulher implica em uma série de
imposições determinadas por uma sociedade com raízes patriarcais, que
relegam, portanto, a nós, um papel secundário ao do homem. Essa
realidade revela uma disparidade entre pessoas identificadas pelo gênero
masculino e feminino, na qual o primeiro se sobrepõe ao segundo.
Ser
negra também cria toda uma realidade, que infelizmente é determinada
por uma sociedade onde a discriminação racial é institucional e o
racismo - embora maquiado pela ideia de democracia - se instaura feroz
nas periferias e em ambientes onde a escassez de negros é gritante.
Diante
dessa desigualdade de oportunidade e do cerceamento da liberdade de
ser, erguem-se resistências, movimentos de contrapartida, que desafiam
os pilares que sustentam essas condições. O feminismo surge em oposição
às heranças do patriarcalismo, é um movimento político e social que visa
garantir a igualdade de direitos entre homens e mulheres, ou seja,
garantir que a participação de ambos na esfera social e pública seja
equivalente.
No entanto seria um erro enxergar homogeneidade em um
movimento protagonizado por mulheres, uma vez que fatores como classe
social e raça se interseccionam à questão de gênero, criando demandas
diferentes para casa uma delas.
Sueli Carneiro, escritora e
diretora do Geledés - Instituto da Mulher Negra, enfatiza em seu artigo:
Enegrecer o Feminismo: A situação da mulher negra na América Latina a
partir de uma perspectiva de gênero, que as demandas das mulheres negras
são distintas das mulheres brancas também em função da experiência
histórica que cada uma viveu. Enquanto as primeiras trabalhavam no
casarão ou nas fazendas, as segundas ocupavam as ruas exigindo
participação no mercado de trabalho.
Hoje dados ainda revelam as
discrepâncias entre mulheres brancas e negras em todas as esferas
sociopolíticas do Brasil. Uma pesquisa realizada em 2003 pelo Ministério
da Saúde revelou indicadores de saúde diferenciados da população
brasileira segundo o critério raça/cor. Seu resultado demonstrou que 62%
das mulheres brancas ouvidas realizaram sete ou mais consultas de
pré-natal, enquanto apenas 37% das mulheres negras passaram pelo mesmo
número de consultas. Não por coincidência, a morte materna - causada
principalmente pela hipertensão arterial durante a gravidez - é mais
frequente entre mulheres negras.
Para além disso, o risco de uma
criança negra morrer antes de completar 5 anos por causas infecciosas e
parasitárias é 60% maior do que o risco de uma criança branca falecer
pela mesma razão, enquanto o risco de morte por desnutrição é 90% maior
entre crianças negras do que entre as brancas.
O direito universal
à saúde é previsto na Constituição Federal brasileira, porém fica clara
a ineficácia de tal universalidade do texto de lei, quando nos são
apresentados dados como os do Relatório anual das desigualdades raciais
no Brasil; 2009-2010 - que demonstram que os negros representam cerca de
60% daqueles que, por motivos diversos, não conseguem atendimento no
SUS, sendo os maiores percentuais os relativos às mulheres negras.
A
situação não é melhor quando falamos sobre feminicídio; uma pesquisa do
IPEA mostrou que a taxa de feminicídios no Brasil foi de 5,82 óbitos
por 100.000 mulheres, no período 2009-2011. Estima-se que ocorreram, em
média, 5.664 mortes de mulheres por causas violentas a cada ano, 472 a
cada mês, 15,52 a cada dia, ou uma a cada hora e meia. Dentre esses
dados, 61% dos óbitos foram de mulheres negras, que foram as principais
vítimas em todas as regiões, com exceção da Sul. Há também uma elevada
proporção de óbitos de mulheres negras nas regiões Nordeste (87%), Norte
(83%) e Centro-Oeste (68%).
As estatísticas e índices retratados
acima expõem a cor e a classe de uma parcela da população que possui
seus direitos sistematicamente cerceados frente a uma discriminação que
conta com o respaldo do Estado brasileiro. Essa moldura distorcida,
repleta de dificuldades e complicações, de negações e violências,
enquadra a vida de inúmeras mulheres negras, e justamente por isso,
essas condições devem servir como combustível para um movimento que
busca a libertação da mulher.
Se o fim da opressão de raça não for
contemplado no feminismo, este não levará a libertação da Mulher Negra,
perdendo, assim, sua principal motivação. Por outro lado, enxergar a
opressão de gênero e a raça como fatores distintos, que se misturam,
pode levar a uma resistência consistente com real potencial para
transformação.
* A Frente Feminista Casperiana Lisandra, coletivo feminista da Faculdade
Cásper Líbero, foi criada em 2013, após os debates iniciados na I Semana
de Mulher e Mídia. Desde sua criação, é organizada independente e
inteiramente por alunas da Faculdade.
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