quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Alterações contraditórias na Lei Maria da Penha


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  • Especialistas ouvidas pelo HuffPost Brasil analisam cenário. Das mudanças na lei considerada referência no combate à violência contra a mulher. 

    Segundo o Atlas da Violência de 2019, 4.963 brasileiras foram mortas em 2017, considerado o maior registro em dez anos. 

    Desde o início de 2019, cinco projetos que alteram a Lei Maria da Penha foram aprovados pelo Congresso Nacional. Na avaliação de especialistas ouvidos pelo HuffPost Brasil, alterações constantes que são entendidas como positivas por parlamentares por vezes podem ser contraditórias e enfraquecer a lei, que é considerada pela ONU (Organização das Nações Unidas) a terceira melhor legilação do mundo no combate à violência doméstica.

    Integrante atual do consórcio que ajudou a elaborar a Lei Maria da Penha, em vigor desde 2006, Alice Mancini defende que as mudanças deveriam ser feitas de forma sistemática. “Tem muitos projetos, a maioria muito bons. O ideal é que pudesse fazer uma sistematização e alterar a lei de uma vez só e olhando o impacto de uma alteração em relação a outra”, afirma Macini, que é vice-presidente da Comissão Nacional da Mulher Advogada na OAB (Ordem dos Advogados do Brasil).

    Devido a essa falta de articulação no Legislativo, há contradições provocadas por alterações recentes. Desde 2018, passou a ser crime o descumprimento da medida protetiva, que só podia ser concedida por juízes. Em 2019, contudo, a competência de conceder a medida foi estendida para delegados e policiais. “Se o sujeito descumpre essa determinação de um policial, por exemplo, não vai responder pelo crime”, aponta Mancini.

    A especialista é autora de um estudo finalizado há dois anos que encontrou 100 questões controvertidas na aplicação da Lei Maria da Penha só no aspecto criminal. Ela afirma que esse cenário é resultado de um machismo estrutural —das delegacias até o Judiciário nas questões de gênero. 

    ”Só existem essas controvérsias porque há um grupo que ainda é resistente à aplicação da Lei Maria da Penha, que fica toda hora tentando fugir da aplicação da lei. Se a gente tivesse, efetivamente, uma percepção no Brasil da função da lei e como ela deve se aplicada, talvez a gente não tivesse tanta divergência.”

    Devido a essa resistência no dia a dia do combate à violência doméstica, Mancini acredita que ajustes na legislação podem ser positivos.

    Quando você propõe muitas alterações que não são estritamente necessárias, pelo fato de a Lei Maria da Penha já ser muito completa, você acaba tendo um efeito reverso. (Silvia Chakian, promotora do Ministério Público de São Paulo)

    Para Silvia Chakian, promotora do Ministério Público de São Paulo, membro Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica, é preciso ter cautela tanto ao apresentar projetos que visam a alterar a Lei Maria da Penha, quanto ao analisá-los.

    “Essas iniciativas podem, em um primeiro momento, trazer modificações que aparentemente são positivas aos olhos leigos, ou que na prática não têm efetividade, ou que podem até trazer prejuízos”, aponta.

    Chakian pondera que, mesmo sendo crítica às iniciativas recentes, reconhece que “há uma boa intenção dos parlamentares” ao propor esses projetos e que alguns, sim, auxiliam na aplicação da lei, como a que tenta facilitar o divórcio da vítima de violência, por exemplo.

    O que diz a Lei Maria da Penha
    Em vigor desde 7 de agosto de 2006, a Lei Maria da Penha estabeleceu que é dever do Estado criar mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra as mulheres e que todas elas, “independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião”, devem gozar de direitos fundamentais, “oportunidades e facilidades para viver sem violência”. 

    A lei é fruto de uma criação coletiva entre ONGs e juristas, após a condenação do Estado brasileiro na Corte Interamericana de Direitos Humanos, que considerou o País omisso na resolução do caso de violência doméstica contra a farmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes, que ficou paraplégica após duas tentativas de assassinato cometidas por Marco Antonio Heredia Viveiros. 

    Treze anos após ser sancionada, houve um amadurecimento por parte da sociedade, poder público e Justiça na consciência e diagnóstico desse tipo de violência, mas a criação de políticas públicas de prevenção, como a reabilitação de agressores, diretrizes educacionais e a criação de varas especializadas na Justiça, segundo especialistas, ainda deixa a desejar.

    “Muito mais do que criar novas leis, a gente precisa investir nas políticas públicas que já estão previstas na Lei Maria da Penha há 13 anos e que não saíram do papel ainda hoje”, aponta Chakian. “Essas iniciativas precisam ser muito debatidas com os profissionais, especialistas e a própria sociedade civil. Ouvir as mulheres, as destinatárias das leis, também é importante.”

    Segundo a especialista, como a criação da Lei Maria da Penha foi feita de forma coletiva e em debate com a sociedade civil, alterações constantes no texto — e sem discussão — podem prejudicar o combate à violência contra a mulher no País.

    “A Lei Maria da Penha é muito bem construída e completa. E quando alterações são provocadas por meio de iniciativas sem discussão, isso enfraquece a lei no sentido de passar uma mensagem de que ela precisa de aprimoramento, de que ela não dá conta. É como se ela fosse passível de alteração a toda hora”, critica. “Isso significa que essa lei pode sofrer quaisquer outras alterações que tenham o efeito contrário [no combate à violência].” 

    Uma das críticas feitas pela promotora Silvia Chakian se refere à alteração recente que obriga o agressor de violência doméstica a ressarcir o SUS (Sistema Único de Saúde) todos os custos com o tratamento da vítima. Esse tipo de medida pode ser perigoso por estimular a revitimização e a reincidência da agressão.

     ″É uma iniciativa muito equivocada. O perfil da mulher que busca o SUS é economicamente carente e, fazer com que o agressor ressarça o SUS pode representar uma nova ameaça. Para a vítima, isso pode representar uma diminuição do poder aquisitivo da própria família, dos filhos, dela própria.”

    Segundo a lei sancionada em setembro, com base em proposta dos deputados Rafael Motta (PSB-RN) e Mariana Carvalho (PSDB-RO), o dinheiro deverá ir para o fundo de saúde do ente federado responsável pelas unidades de saúde que prestarem os serviços. 

    O texto também prevê o ressarcimento do custo de “dispositivos de segurança destinados ao uso em caso de perigo iminente e disponibilizados para o monitoramento das vítimas de violência doméstica ou familiar amparadas por medidas protetivas” e estabelece que esse pagamento “não poderá importar ônus de qualquer natureza ao patrimônio da mulher e dos seus dependentes”.

    Outra mudança aprovada neste ano detalha o procedimento para apreensão de arma de fogo do agressor em episódios de violência doméstica. A Lei Maria da Penha já previa que o juiz determinasse a apreensão por meio de medida protetiva, mas, com a mudança, passa a ser obrigatório que o delegado verifique se o agressor possui registro de porte ou posse de arma.

    “Não era obrigatório. O delegado poderia fazer, mas uns faziam e outros não faziam. Agora manda informação para o juiz e ele determina. Agiliza essa situação. Não que isso não pudesse acontecer antes, mas formaliza”, explica Alice Mancini.

    Bancada feminina X Veto do presidente do Brasil

    As mudanças na legislação sobre violência doméstica ganharam destaque nas últimas semanas com o debate sobre o veto do presidente Jair Bolsonaro ao projeto de lei 2.538/2019, que obriga profissionais da saúde a notificar indícios e casos explícitos de violência contra a mulher à polícia em, no máximo, 24 horas. Não havia antes o prazo legal, nem a obrigação de notificar indícios.

    Inicialmente, a medida previa uma alteração na Lei Maria da Penha. Mas o Senado decidiu adicioná-la na Lei 10.778, de 2003, que já regula esse tipo de prática em hospitais tanto públicos quanto privados.

    O veto presidencial é baseado no entendimento dos ministérios da Saúde e da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. A mensagem de veto aponta que a proposta contraria o interesse público e que a identificação compulsória da vítima “vulnerabiliza ainda mais a mulher”, destacando a importância do sigilo nesses casos, evitando a exposição a outros episódios de violência.

    Compartilham dessa visão especialistas em violência doméstica ouvidas pelo HuffPost Brasil. A Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras chegou a emitir uma nota pública em que aponta incongruências no projeto de lei, entendido como inconstitucional por tornar compulsória a notificação e ignorar a exposição da vítima.

    Alguns especialistas colocam essa questão da autonomia, mas da mesma forma, se uma mulher está sendo espancada dentro de um quarto e o vizinho notifica, é a mesma natureza.(Professora Dorinha, presidente da Bancada Feminina)

    Defensores do PL afirmam que o objetivo é evitar a subnotificação e que o fato de esse tipo de crime ser processado por meio de ação penal pública incondicionada (não precisa de a mulher denunciar) justificam a notificação obrigatória. Esse é o entendimento da autora da proposta, deputada Renata Abreu (Podemos-SP) e da maioria da bancada feminina. 

    “Deve ser notificado, independentemente da vontade da mulher, porque muitas vezes a vontade dela está contaminada pela questão da violência, do domínio”, afirmou ao HuffPost a deputada Professora Dorinha (DEM-TO), presidente da bancada. “Alguns especialistas colocam essa questão da autonomia, mas da mesma forma, se uma mulher está sendo espancada dentro de um quarto e o vizinho notifica, é a mesma natureza”, completou.

    A tendência é o Congresso derrubar o veto presidencial. Ainda não há data para essa sessão conjunta da Câmara e do Senado. Em reunião na semana passada, as participantes da bancada feminina defenderam a derrubada.

    “Havia dez parlamentares na reunião, de dez partidos diferentes. Foi posição unânime a derrubada do veto, mas a bancada tem 77 [deputadas] e só éramos dez no momento do debate”, afirmou ao HuffPost a deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ), relatora da Lei Maria da Penha.

    Para a parlamentar, é importante garantir a mudança vetada pelo presidente “porque é nesta fase que a mulher pode ser assassinada”. “Precisa aplicar as medidas protetivas de imediato. É também preciso termos um único banco de dados. Integrar saúde e segurança para termos os mesmos dados é necessário para elaboração de programas e ações de combate à violência”, afirmou.

    A articulação da bancada feminina tem apoio do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). O PL não é de iniciativa do grupo, apesar de ter seu apoio. Ele foi apresentado por Renata Abreu em dezembro de 2015 e aprovado em plenário em 2017, em regime de urgência, na forma de um substitutivo da então deputada Raquel Muniz (PSD-MG), relatora em plenário em nome de todas as comissões temáticas. Em março deste ano, foi aprovado pelo Senado, com alterações, e retornou à Câmara.

    De acordo com assessores legislativos que acompanharam a tramitação, se houvesse alguma inconsistência legal que ferisse a autonomia da mulher, ela teria sido apontada por consultores da Câmara ou do Senado.

    Apesar dos 13 anos da existência da Lei Maria da Penha, é crescente o número de mulheres assassinadas no País. Segundo o Atlas da Violência de 2019, 4.963 brasileiras foram mortas em 2017, considerado o maior registro em dez anos.

    A taxa de assassinato de mulheres negras cresceu quase 30%, enquanto a de mulheres não negras subiu 4,5%. Entre 2012 e 2017, aumentou 28,7% o número de assassinatos de mulheres na própria residência por arma de fogo.

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