Em 2012, durante o Fórum Internacional 20 de Novembro realizado na
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), tive a oportunidade
de ouvir uma palestra de Angela Yvonne Davis.
Estava diante da professora universitária e ativista política que integrou a lista das dez pessoas mais procuradas pela Agência Federal de Investigação dos Estados Unidos (FBI), considerada inimiga do Estado sob falsas acusações. Feminista, socialista e militante contra a discriminação racial, integrou o Partido Pantera Negra para Autodefesa (Black Panther Party for Self-Defense) fundado em 1966 e derrocado nos anos 1980 após anos de repressão da polícia estadunidense. A partir de sua experiência como prisioneira política, Davis dedica-se à luta antiprisional e chama atenção para o caráter racial da expansão do complexo carcerário nos EUA. Para ela, há uma conexão entre as políticas de controle populacional e as políticas de aprisionamento.
Como no Brasil, a população carcerária naquele país é predominantemente negra. Enquanto nas prisões brasileiras 60% das(os) detentas(os) são negras(os), nas prisões norte-americanas representam cerca de metade da população carcerária, considerando-se que apenas 13% da população estadunidense é composta por afro-americanas(os). No período imediatamente posterior à abolição, novas instituições foram criadas para incorporar as(os) negras(os) dentro da ordem social, através do aparato jurídico e do controle dos corpos pelo poder do Estado. A democracia da abolição, expressão utilizada por Du Bois, não poderá ser alcançada pelo segmento negro da população, enquanto esse não dispor de meios econômicos para sua subsistência.
A naturalização da criminalidade da população negra esconde o racismo impregnado nas relações sociais e nas instituições políticas, o qual funciona como impeditivo da sua mobilidade social. O sistema penal, tanto brasileiro quanto norte-americano, tem por intuito controlar indivíduos considerados “indesejáveis”, ao mesmo tempo que garante a manutenção das assimetrias raciais.
É a partir dessa perspectiva que Davis realiza seu trabalho com mulheres negras encarceradas. Para ela, os cortes da previdência social norte-americana atingem diretamente mulheres negras e pobres consideradas “reprodutoras” da criminalidade. A imagem construída por esse discurso nos EUA mobilizou a substituição de políticas sociais por políticas de controle da natalidade impostas a esse contingente da população. No Brasil, em que pese as diferenças históricas e o contexto político, a criminalização das(os) negras(os) desde o ventre de suas mães não é uma realidade distante. Apreciações sobre controle da natalidade pautam os discursos de alguns governantes como o governador do Estado do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral. Para ele, a quantidade de gravidezes de mulheres moradoras das favelas tem relação direta com o aumento da criminalidade: “Isso é uma fábrica de produzir marginal. O Estado não dá conta”.
Não é preciso esforço para entender que se trata, em sua maioria, de mulheres negras. Davis lembra que, nos anos 1970, as reinvindicações pelo direito ao aborto legal e acessível para todas as mulheres geraram inúmeros debates na opinião pública estadunidense. Esse direito consistia um pré-requisito fundamental para a emancipação de mulheres das diferentes classes e pertencimento raciais. No entanto, o movimento de controle da natalidade não refletia os reais interesses das mulheres da classe trabalhadora, além de partir de premissas claramente racistas. A distância que se acendeu entre feministas negras e brancas durante a campanha pelo direito ao aborto, deveu-se pela incapacidade desse movimento de compreender suas demandas em relação à reprodução. Para as mulheres negras, o controle da natalidade pela esterilização tinha a ver com o genocídio da população negra e não com a emancipação das mulheres.
Em situação semelhante, as organizações de mulheres negras brasileiras empreenderam, nos anos 1990, a luta contra a esterilização em massa que, sem dúvida, reproduziu os valores eugenistas que pautaram as políticas de saúde pública no século XIX. O controle da reprodução das mulheres pobres à sua revelia estava afinado com o discurso neoliberal. Acreditava-se que a esterilização era uma alternativa plausível para a contenção da pobreza, como se ter menos filhas(os) gerasse automaticamente melhores condições de vida para a população. O direito à equidade racial nas políticas de saúde reprodutiva de mulheres negras constitui uma bandeira do feminismo negro que não pode ter abandonada a perspectiva de classe. O que Davis nos alerta é que mulheres racializadas mais desfavorecidas (negras, indígenas e “chicanas”) da América do Norte têm sido forçadas a optar pela infertilidade definitiva, dado que as circunstâncias econômicas a que estão submetidas as têm obrigado a renunciar ao próprio direito à reprodução.
Não é esse o modelo de direitos sexuais e reprodutivos que queremos. Se no período colonial as mulheres negras raramente podiam criar suas/seus filhas(os) pelas circunstâncias da escravidão, na contemporaneidade ainda padecemos do racismo institucional que reduz e precariza o acesso aos serviços públicos de saúde, levando ao alto índice de violência obstétrica e mortalidade materna. Nas palavras de Angela Davis, o racismo que vivemos hoje é muito mais perigoso, pois está impregnado nas estruturas sociais, políticas e econômicas: o controle da vida e da morte pelo exercício de poder do Estado encontra legitimidade na hierarquização dos agrupamentos raciais. Portanto, o racismo incrustado nas políticas de controle da reprodução e nas políticas do sistema prisional necessita ser denunciado e debatido exaustivamente em toda sua complexidade, para que se constituam estratégias de enfrentamento.
Seguimos no rastro da pantera na construção de um projeto de emancipação coletiva cada vez mais atento às condições materiais de reprodução das relações de poder. Somente assim, nós mulheres negras poderemos vislumbrar a verdadeira abolição.
Estava diante da professora universitária e ativista política que integrou a lista das dez pessoas mais procuradas pela Agência Federal de Investigação dos Estados Unidos (FBI), considerada inimiga do Estado sob falsas acusações. Feminista, socialista e militante contra a discriminação racial, integrou o Partido Pantera Negra para Autodefesa (Black Panther Party for Self-Defense) fundado em 1966 e derrocado nos anos 1980 após anos de repressão da polícia estadunidense. A partir de sua experiência como prisioneira política, Davis dedica-se à luta antiprisional e chama atenção para o caráter racial da expansão do complexo carcerário nos EUA. Para ela, há uma conexão entre as políticas de controle populacional e as políticas de aprisionamento.
Como no Brasil, a população carcerária naquele país é predominantemente negra. Enquanto nas prisões brasileiras 60% das(os) detentas(os) são negras(os), nas prisões norte-americanas representam cerca de metade da população carcerária, considerando-se que apenas 13% da população estadunidense é composta por afro-americanas(os). No período imediatamente posterior à abolição, novas instituições foram criadas para incorporar as(os) negras(os) dentro da ordem social, através do aparato jurídico e do controle dos corpos pelo poder do Estado. A democracia da abolição, expressão utilizada por Du Bois, não poderá ser alcançada pelo segmento negro da população, enquanto esse não dispor de meios econômicos para sua subsistência.
A naturalização da criminalidade da população negra esconde o racismo impregnado nas relações sociais e nas instituições políticas, o qual funciona como impeditivo da sua mobilidade social. O sistema penal, tanto brasileiro quanto norte-americano, tem por intuito controlar indivíduos considerados “indesejáveis”, ao mesmo tempo que garante a manutenção das assimetrias raciais.
É a partir dessa perspectiva que Davis realiza seu trabalho com mulheres negras encarceradas. Para ela, os cortes da previdência social norte-americana atingem diretamente mulheres negras e pobres consideradas “reprodutoras” da criminalidade. A imagem construída por esse discurso nos EUA mobilizou a substituição de políticas sociais por políticas de controle da natalidade impostas a esse contingente da população. No Brasil, em que pese as diferenças históricas e o contexto político, a criminalização das(os) negras(os) desde o ventre de suas mães não é uma realidade distante. Apreciações sobre controle da natalidade pautam os discursos de alguns governantes como o governador do Estado do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral. Para ele, a quantidade de gravidezes de mulheres moradoras das favelas tem relação direta com o aumento da criminalidade: “Isso é uma fábrica de produzir marginal. O Estado não dá conta”.
Não é preciso esforço para entender que se trata, em sua maioria, de mulheres negras. Davis lembra que, nos anos 1970, as reinvindicações pelo direito ao aborto legal e acessível para todas as mulheres geraram inúmeros debates na opinião pública estadunidense. Esse direito consistia um pré-requisito fundamental para a emancipação de mulheres das diferentes classes e pertencimento raciais. No entanto, o movimento de controle da natalidade não refletia os reais interesses das mulheres da classe trabalhadora, além de partir de premissas claramente racistas. A distância que se acendeu entre feministas negras e brancas durante a campanha pelo direito ao aborto, deveu-se pela incapacidade desse movimento de compreender suas demandas em relação à reprodução. Para as mulheres negras, o controle da natalidade pela esterilização tinha a ver com o genocídio da população negra e não com a emancipação das mulheres.
Em situação semelhante, as organizações de mulheres negras brasileiras empreenderam, nos anos 1990, a luta contra a esterilização em massa que, sem dúvida, reproduziu os valores eugenistas que pautaram as políticas de saúde pública no século XIX. O controle da reprodução das mulheres pobres à sua revelia estava afinado com o discurso neoliberal. Acreditava-se que a esterilização era uma alternativa plausível para a contenção da pobreza, como se ter menos filhas(os) gerasse automaticamente melhores condições de vida para a população. O direito à equidade racial nas políticas de saúde reprodutiva de mulheres negras constitui uma bandeira do feminismo negro que não pode ter abandonada a perspectiva de classe. O que Davis nos alerta é que mulheres racializadas mais desfavorecidas (negras, indígenas e “chicanas”) da América do Norte têm sido forçadas a optar pela infertilidade definitiva, dado que as circunstâncias econômicas a que estão submetidas as têm obrigado a renunciar ao próprio direito à reprodução.
Não é esse o modelo de direitos sexuais e reprodutivos que queremos. Se no período colonial as mulheres negras raramente podiam criar suas/seus filhas(os) pelas circunstâncias da escravidão, na contemporaneidade ainda padecemos do racismo institucional que reduz e precariza o acesso aos serviços públicos de saúde, levando ao alto índice de violência obstétrica e mortalidade materna. Nas palavras de Angela Davis, o racismo que vivemos hoje é muito mais perigoso, pois está impregnado nas estruturas sociais, políticas e econômicas: o controle da vida e da morte pelo exercício de poder do Estado encontra legitimidade na hierarquização dos agrupamentos raciais. Portanto, o racismo incrustado nas políticas de controle da reprodução e nas políticas do sistema prisional necessita ser denunciado e debatido exaustivamente em toda sua complexidade, para que se constituam estratégias de enfrentamento.
Seguimos no rastro da pantera na construção de um projeto de emancipação coletiva cada vez mais atento às condições materiais de reprodução das relações de poder. Somente assim, nós mulheres negras poderemos vislumbrar a verdadeira abolição.
Fontes : Blogueiras Negras / CEERT
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