Estudo do Ipea mostra que, embora proporção de negros em atividades públicas seja alto, continua havendo desigualdade no acesso a funções com salários elevados e na ocupação
de melhores colocações
por Hylda Cavalcanti, da RBA
O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) está concluindo um
estudo sobre cotas raciais para o serviço público que, apesar do debate
eterno sobre ações afirmativas, já apresenta em seus resultados dados
que desconstroem vários argumentos apresentados nos últimos meses,
especialmente depois que o governo federal apresentou ao Congresso
projeto de lei para reservar 20% das vagas em concursos para negros que
tenham estudado na rede pública.
Primeiro, a análise mostra que as cotas raciais para servidores já
existem em quatro estados e 46 municípios desde 2002, com sucesso na
maioria das vezes. Em segundo lugar, que a diretriz do governo é uma
necessidade, pois vai ao encontro de percentuais muito destoantes entre
negros e brancos no mercado de trabalho brasileiro nas últimas décadas.
Por último, aponta que tais sistemas não têm sido vinculados a nenhum
programa de renda e só têm direito às cotas os negros aprovados em
todas as colocações e que demonstrarem aptidão para o cargo pleiteado.
Os dados desta pesquisa, prevista para ser divulgada até março de 2014,
servirão para nortear o governo na implementação da política de cotas
raciais nos concursos públicos de todo o Executivo.
Mas já são suficientes para traçar uma espécie de mapeamento e
comprovar que muitos discursos sobre populismo ou atitude de cunho
eleitoreiro em relação à iniciativa estão errados. “Não é por ser negro
que alguém vai ter direito a uma vaga como servidor público”, afirmou a
pesquisadora Tatiana Silva, uma das coordenadoras do trabalho. Tatiana
explicou que apesar do argumento – bastante apresentado pelos que se
posicionam contrários às cotas – de que 45% da população negra já está
no serviço público ser correto, esse percentual mostra uma grande
desigualdade na função exercida por estas pessoas.
“Temos negros juízes, faxineiros ou dentistas, não importa. A maior
parte destes profissionais no Brasil sempre é formada por brancos e as
melhores colocações são ocupadas por brancos. Não é o número em si de
pessoas no serviço público que nos chama a atenção, mas a
desproporcionalidade dessas pessoas em relação ao número de brancos e
também na taxa de ocupação das melhores funções”, enfatizou ela.
Ações interligadas
Algumas das tabelas deste trabalho, às quais a RBA teve
acesso, constatam que, hoje, de cada 100 pessoas que pertencem à
população economicamente ativa do país, 29% são homens negros e 21,6%
são mulheres negras. Os trabalhadores negros ocupam até um percentual maior do que o de brancos nessa faixa (de 26%) – enquanto as mulheres
brancas representam 22,2%, mas, quando se leva em consideração o número
de desempregos ao ano, é bem maior entre pessoas negras.
Da mesma forma, destoa bastante a quantidade de negros e brancos que
concluíram o ensino fundamental, médio ou superior, motivo pelo qual,
para que um programa de ação afirmativa seja completo no Brasil, é
necessário sistema de cotas também no mercado de trabalho.
“Apesar de políticas de ação afirmativa objetivarem corrigir
desigualdades estabelecendo tratamento diferenciado para grupos
desfavorecidos por período temporário e existir já um trabalho
emblemático por parte de programas desenvolvidos por instituições
públicas de ensino, é importante e necessário observar o mundo do
trabalho e a inter-relação entre os dois campos – trabalho e educação.
As iniciativas serão sempre insuficientes se não forem consideradas de
forma interligada”, destaca o relatório inicial com os dados apurados.
O estudo informa, ainda, que parte da desigualdade no mundo do
trabalho no país – que, por sua vez, determina em boa medida a
desigualdade na renda – é derivada da base educacional precária acessada
pelos mais pobres e, em sua maioria, negros, embora isto não signifique
que as diferenças no mercado de trabalho não tenham relação direta com a
discriminação racial.
A apuração revela que foi nas regiões Sul e Sudeste que a legislação
das cotas para servidores públicos teve maior propagação. No Sul, são
dois estados (RS e PR) e 19 municípios (1 em SC, 9 no PR e 9 no RS). No
Sudeste, apenas um estado (RJ) e 24 municípios (3 no RJ, 1 no ES, 13 em
SP, 7 em MG). O Centro-Oeste tem apenas um estado (MS) e um município no
MT. Por sua vez, no Nordeste apenas dois municípios possuíram
legislação nesse sentido.
Alerta e acompanhamento
Os responsáveis pela pesquisa também adiantam que, na maior parte
destes procedimentos, não foram verificados instrumentos consolidados de
acompanhamento e avaliação do sistema de cotas, o que é necessário para
medir a eficácia da ação. “A evolução da participação da população
negra na administração pública deve considerar a distribuição dos cargos
por carreira, nível de escolaridade, faixas de remuneração, lotação,
distribuição regional e hierarquia”, acentuam, no trabalho.
Desde já, os técnicos envolvidos com a pesquisa alertam para a
realização de algumas reflexões sobre o tema, como o fato de, além de
haver acompanhamento insuficiente dos resultados com a ação afirmativa,
nas áreas administrativas, responsáveis pela implementação dessas
políticas, ter sido verificado um cumprimento burocrático da legislação,
ainda que não seja necessariamente de aceitação geral da equipe
envolvida. “A falta de envolvimento da área administrativa com a
temática, aliada à ausência de cobrança do movimento social e das áreas
de igualdade racial, contribui para a limitada oferta de dados
sistematizados”, afirmou Tatiana Silva, ao acentuar que este tipo de
problema pode vir a dificultar o controle social e a avaliação da
iniciativa.
Projetos e contrapontos
Na Câmara dos Deputados foi aprovada recentemente pela Comissão de
Constituição e Justiça o PL que reserva 20% das vagas oferecidas em
concursos públicos do Executivo para afrodescendentes. Já no Conselho
Nacional de Justiça (CNJ), pesquisa realizada nos 91 tribunais
brasileiros que traça uma espécie de radiografia de todos os servidores
ajudará o órgão a estudar a possibilidade de regra semelhante no
Judiciário, para negros e descendentes de indígenas.
“Permitir cotas para os negros terem melhor acesso à educação, nas
escolas públicas e universidades, é algo válido e significativo para o
país, mas não sei se isso vai funcionar da mesma forma em relação a
concursos públicos”, afirmou o sociólogo Paulo Fontana, professor de
cursinhos para concursos e analista legislativo do Senado – que tem
posição oposta à dos pesquisadores do Ipea e também está elaborando um
estudo sobre o tema.
Fontana acredita que, nos concursos, há número menor de vagas em
disputa, a maioria das pessoas que costumam submeter-se aos testes já
fizeram curso superior e a questão seria “mais de conhecimento e preparo
dos candidatos”. Segundo ele, essa não seria “a forma mais correta de
garantir aos afrodescendentes mais espaço no Executivo, porque o
concurso é uma questão de mérito pessoal de cada um.”
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