segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Racismo institucional leva polícia do Brasil e dos EUA a matar mais negros e pobres

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O que justifica a filtragem racial das intervenções policiais no Brasil e nos Estados Unidos? Os dados sobre agressões e mortes de jovens negros nos dois países são alarmantes e salientam a desigualdade e o preconceito que muitas vezes custam a vida dos cidadãos. 
A RFI entrevistou especialistas nesta questão.

O consórcio de jornalistas americanos Fatal Encounters divulgou recentemente o resultado de um novo estudo sobre violência policial nos Estados Unidos. Analisando dados do Sistema Nacional de Estatísticas sobre Mortalidade no país, pesquisadores descobriram que homens negros têm 2,5 mais probabilidade de serem mortos pela polícia do que brancos.

Os dados divulgados pela pesquisa são chocantes: a cada mil homens negros, um será morto pela polícia ao longo de sua vida, seja com arma de fogo, taser ou sufocamento. O excesso de força policial lidera as causas de mortes de homens negros entre 25 e 29 anos, deixando para trás acidentes, suicídios, doenças cardíacas ou câncer.

Para o historiador francês François Durpaire, especialista em Estados Unidos, os dados divulgados no estudo da Fatal Encounters só reforçam o duro cotidiano de jovens negros no país. “Há o fator do racismo da polícia: isso está enraizado na história americana. Para o mesmo tipo de delito ou abordagem policial, se a pessoa é negra, maior é o risco que a situação saia de controle”, avalia.

Durpaire lembra que, embora a sociedade americana tenha evoluído nas últimas décadas, a comunidade negra continua enfrentando dois problemas principais: as desigualdades na relação com a polícia e com a Justiça. “Apesar das tentativas de integrar cidadãos negros aos júris, o tratamento da justiça é desigual com os negros. O próprio movimento Black Lives Matter não nasceu da revolta contra com os policiais, mas da absolvição de George Zimmerman. Ou seja, o problema não é apenas com a polícia, mas também com a Justiça”, destaca.

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De fato, o caso Zimmerman comoveu o país em 2012. O vigia matou a tiros o jovem Trayvon Martin, de 17 anos, alegando legítima defesa. O jovem estava desarmado e foi perseguido e alvejado em um condomínio na periferia de Orlando por ter sido considerado “suspeito” pelo segurança. Zimmerman foi inocentado, com a hipótese de um crime racista descartado, o que gerou uma onda de indignação nos Estados Unidos.

Essa banalização da violência contra negros também tem relação com a grande quantidade de armas de fogo nas mãos de civis nos Estados Unidos. “É preciso lembrar que existe uma taxa de 120 armas a cada 100 habitantes – a maior no mundo. Então, quando um policial faz uma abordagem, ele parte do princípio que há grande possibilidade de que o suspeito esteja armado. Por isso a polícia americana não hesita em atirar”, avalia Durpaire. 

Alvos preferenciais da polícia são negros e pobres
Para o professor Adalmir Leonídio, coordenador do Observatório da Criminalização da Pobreza e dos Movimentos Sociais da USP, há similaridades entre a situação nos Estados Unidos e no Brasil. “Nos dois países, o alvo preferencial da violência policial - que se traduz em tortura e assassinatos - são preferencialmente negros e pobres, moradores dos chamados ‘territórios da pobreza’. No entanto, precisamos considerar a desproporção numérica entre as duas realidades. O Brasil mata muito mais negros e pobres que os Estados Unidos”, ressalta.

Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, dos 5.896 boletins de ocorrência de mortes devido a intervenções policiais entre 2015 e 2016, 76,1% das vítimas eram negros: 5.769 homens e 42 mulheres. Grande parte é jovem: 35,5% têm idades entre 18 e 29 anos. Em 2018, o número de mortes cometidas por policiais na ativa subiu para 6.160 pessoas.

Nos Estados Unidos, de fato, esse número é expressivamente inferior. Segundo o Sistema Nacional de Estatísticas sobre Mortalidade do país, cerca de três americanos são mortos por dia pela polícia, contra 16 no Brasil. Em 2018, 992 pessoas morreram em intervenções policiais nos Estados Unidos.
Mas o que justifica essa filtragem racial da polícia brasileira? Para Leonídio, não há dúvidas: no Brasil, existe um senso comum penal desde o início da desagregação do trabalho escravo no país que relaciona negros e pobres ao potencial criminoso. “Essa parcela da população está envolvida em um clima de permanente suspeição. Nesse novo governo em particular, esse senso comum penal não só foi exacerbado como tem sido explicitamente assumido, o que tem sido favorável à execução de pobres e pretos”, salienta.

Para o especialista, a própria legislação criminal permite a predisposição ao combate arbitrário do “criminoso”, que, ressalta, é uma produção social. “O sistema penal não visa combater o crime, mas o criminoso: essa figura é envolta em todo um manto de estigmas e que obviamente não vai ser o rapaz branco, de classe média”, diz.

Por isso, segundo Leonídio, existe uma “produção criminológica” para o enquadramento desta população à margem da sociedade. “Essas pessoas não são absorvidas pelo mercado de trabalho, não fazem parte da lógica mercantil em evolução e é preciso fazer alguma coisa delas. Isso vai ser muito mais grave em países como o Brasil, onde há uma História de quatro séculos de escravidão. Existe um inimigo interno a ser combatido que, há cem anos, era o ex-escravo. Hoje é o morador da periferia pobre, que se configura como uma ameaça permanente ao patrimônio dos ricos”, reitera.

Resistência sobre o racismo institucional
Para o sociólogo Danilo Morais, professor da Fundação Hermínio Ometto, a resistência das autoridades em reconhecer a existência do racismo institucional piora ainda mais a situação. “Um dos elementos das políticas públicas brasileiras menos tocado pela democratização foi a segurança. Por isso é tão difícil conseguir dialogar com os atores institucionais sobre racismo”, afirma.

O preconceito velado contra os não-brancos no Brasil fortalece esse fenômeno que data de décadas, segundo Morais. “O racismo brasileiro se constituiu, desde a década de 1930, com a noção de que o Brasil é uma democracia racial, ou seja, que as relações raciais no país seriam harmoniosas, sem conflito. Isso serviu como política de Estado na Era Vargas pra criar um mito de unidade nacional. Então constituiu-se um racismo que, ao mesmo tempo que hierarquiza e subalterniza os não-brancos, reiteradamente diz que não há distinção entre as pessoas”, afirma.

Por isso, segundo o sociólogo, o racismo brasileiro não é explícito. Ele se apresenta no âmbito institucional – com a produção de desigualdade racial no acesso a direitos – e também o racismo latitudinal, nas relações cotidianas.

A partir da promulgação da Constituição de 1988 é que se começou a discussão e a implementação de algumas ações afirmativas para se começar a superar as desigualdades sociais no Brasil. No entanto, Morais sublinha que os retrocessos que o país vive atualmente prejudicam as “tímidas, mas importantes mudanças de percepções sobre as relações raciais”.

“Infelizmente o atual presidente reforça os elementos mais retrógrados sobre o que são as relações étnicos-raciais no Brasil. No campo da segurança pública, uma das áreas mais impermeáveis para a evolução da questão racional, havia o início da discussão que agora retrocede de uma maneira brutal, com um governo com uma visão de mundo que se constitui como uma espécie de neofascismo”, avalia.

De acordo com o professor, se antes já havia uma aprovação tácita por parte das autoridades para a filtragem racial dentro da segurança pública, atualmente há uma autorização explícita por parte do governo nacional. As consequências, segundo Morais, serão o aumento de número de mortos nos próximos anos não apenas de civis, mas também de policiais.

“Essas políticas de segurança pública que privilegiam as situações de confronto também fragilizam o agente. Os policiais morrem muito em ação e, enquanto categoria profissional, a polícia é um dos setores onde mais se comete suicídio. Ou seja, essa situação não é adequada para ninguém. Até porque, se produzir encarceramento e morte fosse sinônimo de segurança, o Brasil seria um paraíso”, conclui.

Fonte: AsVozesdomundo 

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