O que justifica a filtragem racial das intervenções policiais
no Brasil e nos Estados Unidos? Os dados sobre agressões e mortes de jovens
negros nos dois países são alarmantes e salientam a desigualdade e o
preconceito que muitas vezes custam a vida dos cidadãos.
A RFI entrevistou
especialistas nesta questão.
O consórcio de jornalistas americanos Fatal
Encounters divulgou recentemente o resultado de um novo
estudo sobre violência policial nos Estados Unidos. Analisando dados do
Sistema Nacional de Estatísticas sobre Mortalidade no país, pesquisadores
descobriram que homens negros têm 2,5 mais probabilidade de serem mortos pela
polícia do que brancos.
Os dados divulgados pela pesquisa são chocantes: a cada mil
homens negros, um será morto pela polícia ao longo de sua vida, seja com
arma de fogo, taser ou sufocamento. O excesso de força policial lidera as
causas de mortes de homens negros entre 25 e 29 anos, deixando para trás
acidentes, suicídios, doenças cardíacas ou câncer.
Para o historiador francês François Durpaire, especialista em
Estados Unidos, os dados divulgados no estudo da Fatal Encounters só
reforçam o duro cotidiano de jovens negros no país. “Há o fator do racismo da
polícia: isso está enraizado na história americana. Para o mesmo tipo de delito
ou abordagem policial, se a pessoa é negra, maior é o risco que a situação saia
de controle”, avalia.
Durpaire lembra que, embora a sociedade americana tenha
evoluído nas últimas décadas, a comunidade negra continua enfrentando dois
problemas principais: as desigualdades na relação com a polícia e com a
Justiça. “Apesar das tentativas de integrar cidadãos negros aos júris, o
tratamento da justiça é desigual com os negros. O próprio movimento Black Lives
Matter não nasceu da revolta contra com os policiais, mas da absolvição de
George Zimmerman. Ou seja, o problema não é apenas com a polícia, mas também
com a Justiça”, destaca.
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De fato, o caso Zimmerman comoveu o país em 2012. O vigia matou a tiros o jovem Trayvon Martin, de 17 anos,
alegando legítima defesa. O jovem estava desarmado e foi perseguido e alvejado
em um condomínio na periferia de Orlando por ter sido considerado “suspeito”
pelo segurança. Zimmerman foi inocentado, com a hipótese de um crime racista
descartado, o que gerou uma onda de indignação nos Estados Unidos.
Essa banalização da violência contra negros também tem
relação com a grande quantidade de armas de fogo nas mãos de civis nos Estados
Unidos. “É preciso lembrar que existe uma taxa de 120 armas a cada 100
habitantes – a maior no mundo. Então, quando um policial faz uma abordagem, ele
parte do princípio que há grande possibilidade de que o suspeito esteja armado.
Por isso a polícia americana não hesita em atirar”, avalia Durpaire.
Alvos preferenciais da polícia são negros e pobres
Para o professor Adalmir Leonídio, coordenador do Observatório da
Criminalização da Pobreza e dos Movimentos Sociais da USP, há similaridades entre a situação nos Estados Unidos e no Brasil.
“Nos dois países, o alvo preferencial da violência policial - que se traduz em
tortura e assassinatos - são preferencialmente negros e pobres, moradores dos
chamados ‘territórios da pobreza’. No entanto, precisamos considerar a
desproporção numérica entre as duas realidades. O Brasil mata muito mais negros
e pobres que os Estados Unidos”, ressalta.
Segundo o Anuário
Brasileiro de Segurança Pública, dos 5.896 boletins de ocorrência de mortes
devido a intervenções policiais entre 2015 e 2016, 76,1% das vítimas eram
negros: 5.769 homens e 42 mulheres. Grande parte é jovem: 35,5% têm idades
entre 18 e 29 anos. Em 2018, o número de mortes cometidas por policiais na
ativa subiu para 6.160 pessoas.
Nos Estados Unidos, de fato, esse número é expressivamente
inferior. Segundo o Sistema Nacional de Estatísticas sobre Mortalidade do país,
cerca de três americanos são mortos por dia pela polícia, contra 16 no Brasil.
Em 2018, 992 pessoas morreram em intervenções policiais nos Estados Unidos.
Mas o que justifica essa filtragem racial da polícia brasileira? Para Leonídio, não
há dúvidas: no Brasil, existe um senso comum penal desde o início da
desagregação do trabalho escravo no país que relaciona negros e pobres ao
potencial criminoso. “Essa parcela da população está envolvida em um clima de
permanente suspeição. Nesse novo governo em particular, esse senso comum penal
não só foi exacerbado como tem sido explicitamente assumido, o que tem sido
favorável à execução de pobres e pretos”, salienta.
Para o especialista, a própria legislação criminal permite a
predisposição ao combate arbitrário do “criminoso”, que, ressalta, é uma
produção social. “O sistema penal não visa combater o crime, mas o criminoso:
essa figura é envolta em todo um manto de estigmas e que obviamente não vai ser
o rapaz branco, de classe média”, diz.
Por isso, segundo Leonídio, existe uma “produção
criminológica” para o enquadramento desta população à margem da sociedade.
“Essas pessoas não são absorvidas pelo mercado de trabalho, não fazem parte da
lógica mercantil em evolução e é preciso fazer alguma coisa delas. Isso vai ser
muito mais grave em países como o Brasil, onde há uma História de quatro
séculos de escravidão. Existe um inimigo interno a ser combatido que, há cem
anos, era o ex-escravo. Hoje é o morador da periferia pobre, que se configura
como uma ameaça permanente ao patrimônio dos ricos”, reitera.
Para o sociólogo Danilo Morais, professor da Fundação Hermínio Ometto, a
resistência das autoridades em reconhecer a existência do racismo institucional
piora ainda mais a situação. “Um dos elementos das políticas públicas
brasileiras menos tocado pela democratização foi a segurança. Por isso é tão
difícil conseguir dialogar com os atores institucionais sobre racismo”, afirma.
Por isso, segundo o sociólogo, o racismo brasileiro não é
explícito. Ele se apresenta no âmbito institucional – com a produção de
desigualdade racial no acesso a direitos – e também o racismo latitudinal, nas
relações cotidianas.
“Infelizmente o atual presidente reforça os elementos mais
retrógrados sobre o que são as relações étnicos-raciais no Brasil. No campo da
segurança pública, uma das áreas mais impermeáveis para a evolução da questão
racional, havia o início da discussão que agora retrocede de uma maneira
brutal, com um governo com uma visão de mundo que se constitui como uma espécie
de neofascismo”, avalia.
De acordo com o professor, se antes já havia uma aprovação
tácita por parte das autoridades para a filtragem racial dentro da segurança
pública, atualmente há uma autorização explícita por parte do governo nacional. As
consequências, segundo Morais, serão o aumento de número de mortos nos próximos
anos não apenas de civis, mas também de policiais.
“Essas políticas de segurança pública que privilegiam as
situações de confronto também fragilizam o agente. Os policiais morrem muito em
ação e, enquanto categoria profissional, a polícia é um dos setores onde mais
se comete suicídio. Ou seja, essa situação não é adequada para ninguém. Até
porque, se produzir encarceramento e morte fosse sinônimo de segurança, o
Brasil seria um paraíso”, conclui.
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