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Nascer e morrer são verbos mais
dolorosos para mulheres negras. No momento do parto, 60% das vítimas de mortalidade materna são negras. Segundo
dados do Ministério da Saúde, somente 27% das mulheres negras tiveram
acompanhamento durante o parto, enquanto que entre as não negras esse número é
de 46%. As estatísticas também mostram que mulheres negras são mais
assassinadas. Nos últimos dez anos, a taxa de homicídio entre negras aumentou
15% enquanto que a de mulheres não negras diminuiu 8%.
Entre o nascimento e a morte,
porém, as mulheres negras enfrentam ainda uma série de outras violações que vão da infância à vida adulta e
permeiam todas as esferas que se possa imaginar. “Você não precisa de anestesia
porque é mais resistente”, “seu cabelo fica melhor preso”, “seu currículo é bom
demais, mas infelizmente não foi dessa vez”. Frases como essas, ouvidas
cotidianamente por mulheres negras revelam uma parte do racismo e da violência
que suportam. A outra parte, mais velada, se transforma em números ou em
batalhas pessoais.
Segundo Anielle Silva, irmã da
vereadora assassinada em março desse ano no Rio de Janeiro, as violações têm
início desde o momento da apresentação da mulher negra à sociedade. “As pessoas
nos julgam já pelo olhar”, diz ela ao R7. “Já estudei em um colégio
em que me pediram para não ir de cabelo solto, me mandaram usar algo para
prender.” Ela lembra também que acompanhou a irmã no momento do parto em um
hospital público e ouviu de uma das enfermeiras: “você vai aguentar porque é
mais resistente.”
Demonstrações como essas são,
segundo a diretora executiva do Instituto Identidades do Brasil, Luana Genot,
manifestações baseadas em uma lógica colonial e escravocrata. “Trata-se de uma
lógica de que a mulher negra deve estar duas ou três vezes mais preparada para
enfrentar a sociedade”, diz. “O racismo é muito maior do que um insulto ou uma
ofensa momentânea. É um sistema que opera de muitas formas, inclusive, de
maneira institucional.”
Racismo no nascimento e na
infância
Entre mulheres negras, as
principais causas de morte materna, no momento do parto, são decorrentes de
hipertensão, hemorragia e infecções. O Ministério da Saúde recomenda, pelo
menos, seis consultas médicas durante o pré-natal. A medida é cumprida por 74,5%
das mulheres, 55,7% entre as negras e 54,2% entre as pardas. Os números
escancaram as dificuldades enfrentadas por mulheres negras para acessar a
saúde.
Passado o desafio de dar à luz,
a mulher negra ainda tem de se preparar para a criação dos filhos em ambientes
com possíveis manifestações de racismo. A criança negra é alvo de comentários
discriminatórios por parte de colegas, professores ou ainda pior, das próprias
instituições de ensino. Para a cientista social Luciana Bento, que escreve para
um blog de maternidade para mulheres negras, é importante compartilhar
experiências sobre as crianças dos filhos em ambientes racistas.
"Que não pensem que não
existem bonecas pretas porque elas não são bonitas" Luciana Bento,
cientista social
Em um de seus relatos, ela
conta sobre quando adquiriu em um supermercado comum uma boneca negra. “Que as
milhas filhas possam crescer encontrando com naturalidade brinquedos
representativos, que não pensem sequer por um instante que não existem bonecas
pretas porque elas não são bonitas.” No caso da criação dos meninos, Luciana
afirma que a troca de experiência com outras mães negras é relevante pelo fato
de serem a parcela da população mais vulnerável aos homicídios.
Luana também cuida da educação
da pequena Alice, de oito meses, no que se refere às questões de gênero e raça.
“Tenho me preocupado em comprar uma boneca preta, mostrar referências de
pessoas negras”, diz. “Ela precisa ter essas referências desde o princípio para
que lute contra manifestações racistas que vão acontecer.”
Dificuldades na educação e no
mercado de trabalho
Ainda que as cotas para negros
em universidades públicas tenham transformado o acesso à educação para essa
parcela da sociedade, a desigualdade no país ainda é gigantesca. De acordo com
dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), o percentual
de mulheres brancas com ensino superior completo é 2,3 vezes maior do que o de
pretas ou pardas. Enquanto o índice do primeiro grupo é de 23,5%, o do segundo
é de 10,4%.
O acesso à educação e ao
mercado de trabalho por mulheres negras é, segundo Luana, um dos maiores
desafios às mulheres negras. “É preciso lutar para que esse acesso seja
universalizado e para que a mulher negra ocupe todos os lugares e não os que
foram determinados para ela ocupar”, diz. “Assim, as meninas negras crescerão
se enxergando como potenciais.”
Seriam necessários 150 anos
para que oportunidades entre pessoas negras e não negras se equiparassem
Instituto Identidades do Brasil
O caminho, porém, não é fácil.
Um estudo do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), divulgado em
outro desse ano, apontou que mulheres negras estão 50% mais suscetíveis ao desemprego do que
outros grupos. Além disso, entre o segundo trimestre de 2014 e o
primeiro trimestre de 2017, mulheres negras representaram a fatia com maior
aumento absoluto na taxa de desemprego, uma variação de 8,8 pontos percentuais.
“Na hora de entregar o
currículo, muitas mulheres relatam que se o perfil do cargo requer muita
exposição, as candidatas negras são rejeitadas”, afirma Luana. Um levantamento
do Instituto Identidades do Brasil afirma que seriam necessários 150 anos para
que oportunidades entre pessoas negras e não negras se equipararem.
Espaços públicos e alvo da
violência
Ao mesmo tempo em que aumentou
o número de assassinatos de mulheres negras nos últimos anos no país, como
ocorreu com Marielle Franco, aumentaram também manifestações, denúncias e
mobilizações em torno dos direitos das mulheres negras. Segundo Luana, o
empoderamento da mulher negra se deu, principalmente, por meio da ampliação de
políticas públicas colocadas em práticas.
Muitas delas, como as cotas,
são consideradas por especialistas como exemplos positivos na diminuição da
desigualdade estrutural e outras ainda não saíram do papel. “Ainda não vemos
disciplinas que coloquem o estudo da África como um continente múltiplo em
saberes”. Nesta terça-feira (19), dia da Consciência Negra, o Instituto lançará
uma campanha para abordar a diferença entre salários para profissionais negros
e não negros.
“Estamos sempre tendo de lutar
e provar nessa existência”Anielle Silva, irmã de Marielle
Franco
Ainda assim, muito ainda
precisa ser feito. Segundo Anielle Franco, mulheres negras saem muito cedo de
casa e voltam muito tarde. Isso, explica, as coloca na linha de frente da
violência. “Estamos sempre tendo de lutar e provar nessa existência”, diz. Ela
conta que Marielle, quando começou a trabalhar nos espaços públicos de poder
tinha dificuldades em aceitar algumas características. “Ela ficava incomodada
com o cabelo, colocada uma faixa para disfarçar, só depois foi aceitando
melhor. Percebo que muitas pessoas começaram a se aceitar como são.”
Hoje, Anielle acredita que as
pessoas, sobretudo, as mulheres negras estão falando mais e ocupando espaços
onde antes eram rejeitadas. “Depois da tese da minha irmã que falava sobre ser
mãe solo, muitas mulheres foram procurá-la para compartilhar essas
experiências”, diz. “Na própria política, a morte dela acentuou o desejo de
participação de uma forma bastante visível.”
Velado e escancarado ao mesmo
tempo no país, o racismo ainda é uma prática recorrente. Mas, à medida que as
pessoas conseguem questionar a lógica racial dos espaços públicos, explica
Luana, é possível falar em alguma mudança. “Ainda é muito difícil, mas diversas
mulheres negras têm conseguido reivindicar seus direitos de uma forma mais
ampla.”
Fonte: R7.com
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