terça-feira, 25 de setembro de 2018

Inclusão de mulheres (negras) no universo da tecnologia


por :  Liana Rego e Marta Araújo 
Imagem divulgada pela plataforma PretaLab

Quando falamos de desigualdade social no Brasil, temos assunto de conversa para anos de debate e discussão. É precisamente isso que nos predispomos a fazer com este artigo; não durante anos, mas durante alguns minutos.

 No panorama brasileiro, esta é uma realidade que deixa um rasto numérico avassalador: as mulheres negras são as que têm maior taxa de desemprego, menores salários e maior dificuldade no acesso ao ensino superior (que tem subido, mas não o suficiente).

Para piorar, são ainda as que mais sofrem com a criminalização do aborto, com a violência doméstica e com a violência obstétrica. Obviamente, todos estes indicadores sociais trazem consequências para o futuro dessas mulheres, como a dificuldade de entrada no mercado de trabalho e a permanência em cargos de menor prestígio e remuneração. Em relação a cargos públicos, não é propriamente chocante que a representatividade também seja escassa – em 2016, apenas 0.5% das figuras eleitas eram mulheres negras (segundo dados do Instituto Geledés e da Organização não Governamental Criola). 
Tendo em conta que as mulheres negras correspondem a 27% da população do Brasil, podemos rapidamente perceber que algo está errado.

Dentro de todo este ciclo de discriminação, desigualdade, barreiras sociais constantes e preconceitos infundados, há um panorama muito especial e particular: o da tecnologia. Por isso, está na altura de lançarmos a primeira questão: alguma vez parou para pensar que o universo tecnológico é completamente dominado pelo sexo masculino?

 As (ainda) poucas mulheres que batalham pela afirmação nesse mundo são maioritariamente brancas. Estima-se que, nos Estados Unidos da América, 2% do trabalho elaborado no campo das ciências e da engenharia é realizado por mulheres negras. Quando falamos do Brasil, esse levantamento estatístico nem sequer existe.

É certo que todos estes constrangimentos não podem apenas ser interpretados como um problema que começa na vida adulta destas mulheres. Todas elas, negras ou brancas, são “empurradas” para corresponder a certos papéis de género, que contemplam universos distantes do da Ciência e da Tecnologia. A responsabilidade social face a questões como esta deve ser largamente partilhada: entre as instituições, o governo, mas também entre todos os progenitores que educam os seus filhos e filhas de maneira a encaixá-los em “gavetas” de estereótipo.

Como resposta combativa a este flagelo, a Olabi, uma organização social carioca cujo principal objetivo é a democratização da produção tecnológica, criou a PretaLab.

Se o nome não é suficientemente esclarecedor – e talvez não seja, porque o tema é complexo -, vamos, então, perceber do que se trata. Nasceu em forma de campanha, com o objetivo de recolher as identidades das mulheres negras e indígenas a trabalhar no setor tecnológico e de estimular a sua inclusão e aceitação no meio. Tudo começou com um simples formulário na internet, no qual estas mulheres foram convidadas a deixar o seu testemunho sobre os percursos e as experiências que viveram até então; depois, ainda como parte da campanha, foram recolhidos vídeos com declarações de protagonistas inspiradoras, que pudessem servir de exemplo para as gerações mais novas e, em específico, para as meninas negras que crescem, atualmente, no Brasil. Essa inspiração chegou, claro, através da representatividade: ouvir uma mulher negra, bem-sucedida, a falar de como é possível (e importante) chegar ao ativismo digital ou ao empreendedorismo, permite que as meninas mais novas, que se veem refletidas naquela figura, também negra e do sexo feminino, criem uma referência positiva a respeito delas próprias – e a respeito da possibilidade de se tornarem profissionais da área da Ciência e da Tecnologia.

TEORIA TECNOLÓGICA DA EXCLUSÃO: HÁ ESPAÇO PARA A DIVERSIDADE?

Está a questionar-se sobre a pertinência da PretaLab? Então, voltemos aos números: calcula-se, segundo uma pesquisa realizada pela Accenture Strategy, que a tecnologia digital reflete cerca de 22,5% da economia mundial, representando um montante de US$ 19,5 triliões. Prevê-se que a percentagem suba para os 25% até 2020, alcançando os US$ 24,6 triliões. No mundo ideal, não seria justo que o desenvolvimento do universo tecnológico pudesse também ser alimentado por mulheres negras?

Já toda a gente constatou (provavelmente) que a tecnologia se entranhou nas dinâmicas urbanas; está presente em quase tudo. Diariamente, utilizamos aplicações móveis para todo o tipo de coisas e esquecemo-nos que estas – além das suas funcionalidades – trazem consigo uma bula gigantesca de contraindicações: visões políticas, económicas e culturais; preconceitos; estereótipos; etc. A grande maioria foi criada por homens brancos e heterossexuais, de classe média alta e de classe alta. Alguma surpresa?

Segundo os dados divulgados pelo Fórum Económico Mundial (The World Economic Forum), continua a existir uma predominância de homens no setor da biotecnologia. Além disso, os números revelam que, devido à crescente automatização laboral, as mulheres são as primeiras a perderem o emprego: parece que a máquina substitui o sexo feminino, mas não o masculino. 
O panorama também difere quando abordamos os dados dos homens negros bem-sucedidos ou das mulheres negras no mundo tecnológico. Estas últimas fazem parte da minoria das minorias.

Continuando na ótica dos estudos, a Algorithmic Justice League (Liga da Justiça do Algoritmo) tem procurado denunciar o racismo que se encontra implícito em programas de inteligência artificial. Segundo os dados revelados, foi detetada, em programas de reconhecimento artificial, uma grande dificuldade em identificar os traços de rostos negros.
A falta da diversidade étnica, dentro das equipas que criam esses programas, foi a principal razão assinalada. Se as séries de rostos que são criadas e inseridas no computador não são diversas o suficiente, qualquer feição que se desvie da norma não será reconhecida. Foram consultados documentos do FBI que revelaram que “o reconhecimento facial é menos preciso em negros”. Apesar destas descobertas, ainda não existem estudos independentes com testes para viés racistas. (Como não?)

Enquanto as estatísticas, as análises científicas e as políticas públicas ignorarem a importância da mulher negra no mundo da tecnologia, estas vão continuar à margem das esferas de decisão. Não é difícil perceber qual a consequência: segregação social e laboral.

Segundo uma pesquisa económica, divulgada pela Glassdoor, os empregos na área da Tecnologia, Engenharia e Ciência foram os mais bem pagos, em 2017. O setor da tecnológico, tal como apuramos anteriormente, é um meio de emancipação económica a nível global. Contudo, continua a ser alimentado pela norma. 
O desigual acesso à educação e a perpetuação dos estereótipos e preconceitos insistem em afastar as mulheres negras do mundo da educação, anulando a possibilidade da criação de uma carreira profissional nestas áreas.

Com o intuito de analisar a presença do sexo feminino – nos ramos da Ciência, Tecnologia e Engenharia – no Brasil, na China, nos EUA e na Índia, a pesquisa americana Athena Factor 2.0 concluiu que as mulheres abandonam a indústria da tecnologia porque são tratadas de forma desigual e recebem salários menores do que os homens, admitindo que as hipóteses de progressão de carreira são muito baixas. No Brasil, 29% das mulheres inquiridas assumiram que se sentem estagnadas nos seus trabalhos; 22% garantiram que pensam desistir da carreira a médio prazo. De acordo com o Centro de Inovação e Talento, 77% das mulheres negras, inseridas em empresas de alta tecnologia, afirmaram que se sentem extremamente “pressionadas”, porque precisam de provar a sua competência mais do que os seus pares. Como é de senso comum, a exigência laboral acima da média pode gerar ansiedade e causar graves problemas de saúde.

Tal como revelou o estudo Why so Few? (Porquê tão poucas?), realizado em 2010, 27.576 mulheres negras obtiveram diplomas nas áreas da Engenharia, da Ciência e da Tecnologia, representando 10,7% dos certificados académicos concebidos a mulheres nos Estados Unidos da América. Contudo, apenas 1% das que conseguem emprego nessas indústrias é de raça negra. Conclusão: mesmo que o acesso das mulheres negras ao ensino superior seja significativamente maior em países como os EUA – quando comparado com países como o Brasil – o racismo e o machismo continuam a impedir que estas singrem no mercado de trabalho, segundo os dados apurados pela PretaLab.

O COMBATE ORGANIZADO: MULHERES NEGRAS NA FILEIRA DA FRENTE

Felizmente, em países, no qual o debate sobre a multiculturalidade é uma constante – como é o caso dos Estados Unidos – têm sido criadas diversas iniciativas que desvendam a importância que este assunto tem na agenda política, incentivando o debate e a discussão sobre o mesmo. Hire More Women In TechBlack Girls CodeBlack Tech Women, são apenas alguns dos nomes que as exemplificam.

No cenário brasileiro, os dados que existem sobre o panorama das mulheres negras no setor da tecnologia e da inovação encontram-se por apurar. A ausência de diversidade étnica pode estar ligada a dois fatores: dificuldades ao acesso e falta de referências. 

A maioria dos estudos sobre tecnologia e ciência estão redigidos em inglês e a existência de políticas – públicas ou privadas -, que incentivem a aposta nessas áreas são muito poucas, tal como mostra o levantamento realizado pela PretaLab. Além disso, a falta de referência de casos de sucesso de mulheres negras e indígenas brasileiras, nos contextos tecnológico e científico, é também apresentada como um dos principais fatores que contribuem para a taxa de desmotivação.

Vamos às boas notícias: parece que a PretaLab veio para ficar. Com o imenso envolvimento que a campanha recebeu, a expansão para algo mais duradouro e abrangente foi inevitável. Como se pode ler na plataforma, foram “570 mulheres dos 17 aos 67 anos, com inserções e interesses vários, a maioria concentrados em inovação (29,1%) e transformação social (14,6%)” que responderam à iniciativa, vindas “das cinco regiões do país e de quase todos os estados”. 
Assim, a PretaLab teve a margem que precisava para se tornar aquilo que é hoje: uma plataforma verdadeiramente inovadora para o setor da tecnologia no Brasil, que realça a urgência de levar mais mulheres negras e indígenas para o mundo da Ciência, de forma a que o meio deixe de ser associado a algo exclusivo para o “masculino” (seja lá o que isso for) e para o “branco”.

“Tecnologia é a linguagem do século 21. É política, é poder, é direitos humanos, é cidadania. É fim e é meio. Tem que andar em conjunto com todas as outras causas e pautas, senão estaremos sempre um passo atrás”.

— Silvana Bahia, diretora da Olabi e idealizadora da plataforma PretaLab

Não é segredo que as mulheres representam, globalmente, um aglomerado social altamente discriminado, mas a interseccionalidade – ou teoria interseccional, que apresenta a desigualdade social como uma lógica sistemática assente numa base multidimensional – permite-nos olhar para esta problemática de uma maneira ainda mais assustadora, mas também mais informada. Esta lógica coloca em evidência a sobreposição de condições desfavoráveis face ao acesso à justiça e igualdade sociais, o que significa que se ser mulher é difícil, ser mulher e ser negra apresenta, ainda, maiores desafios.

É certo que o panorama global tem vindo a ser modificado. Discutir, questionar, intervir, investigar, desvendar são apenas alguns do verbos que assinalam a caminhada, em direção à igualdade. Mesmo no Brasil, as mulheres têm investido na união, criando redes e iniciativas de apoio que possam minimizar as disparidades sociais e profissionais, dando voz ao sexo feminino no mundo da tecnologia. Não nos podemos esquecer que todas as mulheres, independentemente do credo, da religião, da cor de pele ou etnia, têm o direito (e dever) de deixar uma indelével marca na batalha pela sua emancipação.

Artigo redigido pelas jornalistas do portal da Conexão Lusófona

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