por : Liana Rego e Marta Araújo
Imagem divulgada pela plataforma PretaLab |
Quando falamos de desigualdade
social no Brasil, temos assunto de conversa para anos de debate e discussão. É
precisamente isso que nos predispomos a fazer com este artigo; não durante
anos, mas durante alguns minutos.
No panorama brasileiro,
esta é uma realidade que deixa um rasto numérico avassalador: as mulheres
negras são as que têm maior taxa de desemprego, menores salários e maior
dificuldade no acesso ao ensino superior (que tem subido, mas não o suficiente).
Para piorar, são ainda as que
mais sofrem com a criminalização do aborto, com a violência doméstica e com a
violência obstétrica. Obviamente, todos estes indicadores sociais trazem
consequências para o futuro dessas mulheres, como a dificuldade de entrada no
mercado de trabalho e a permanência em cargos de menor prestígio e remuneração.
Em relação a cargos públicos, não é propriamente chocante que a
representatividade também seja escassa – em 2016, apenas 0.5% das
figuras eleitas eram mulheres negras (segundo dados do Instituto
Geledés e da Organização não Governamental Criola).
Tendo em conta que as
mulheres negras correspondem a 27% da população do Brasil, podemos
rapidamente perceber que algo está errado.
Dentro de todo este ciclo de
discriminação, desigualdade, barreiras sociais constantes e preconceitos
infundados, há um panorama muito especial e particular: o da tecnologia. Por
isso, está na altura de lançarmos a primeira questão: alguma vez parou para
pensar que o universo tecnológico é completamente dominado pelo sexo masculino?
As (ainda) poucas mulheres que batalham pela
afirmação nesse mundo são maioritariamente brancas. Estima-se que, nos Estados
Unidos da América, 2% do trabalho elaborado no campo das ciências e da
engenharia é realizado por mulheres negras. Quando falamos do Brasil, esse
levantamento estatístico nem sequer existe.
É certo que todos estes
constrangimentos não podem apenas ser interpretados como um problema que começa
na vida adulta destas mulheres. Todas elas, negras ou brancas, são “empurradas”
para corresponder a certos papéis de género, que contemplam universos distantes
do da Ciência e da Tecnologia. A responsabilidade social face a questões como
esta deve ser largamente partilhada: entre as instituições, o governo, mas
também entre todos os progenitores que educam os seus filhos e filhas de
maneira a encaixá-los em “gavetas” de estereótipo.
Como resposta combativa a este
flagelo, a Olabi,
uma organização social carioca cujo principal objetivo é a democratização da
produção tecnológica, criou a PretaLab.
Se o nome não é suficientemente
esclarecedor – e talvez não seja, porque o tema é complexo -, vamos, então,
perceber do que se trata. Nasceu em forma de campanha, com o objetivo de
recolher as identidades das mulheres negras e indígenas a trabalhar no setor
tecnológico e de estimular a sua inclusão e aceitação no meio. Tudo começou com
um simples formulário na internet, no qual estas mulheres foram
convidadas a deixar o seu testemunho sobre os percursos e as experiências que
viveram até então; depois, ainda como parte da campanha, foram recolhidos
vídeos com declarações de protagonistas inspiradoras, que pudessem servir de
exemplo para as gerações mais novas e, em específico, para as meninas negras
que crescem, atualmente, no Brasil. Essa inspiração chegou, claro, através da
representatividade: ouvir uma mulher negra, bem-sucedida, a falar de como é
possível (e importante) chegar ao ativismo digital ou ao empreendedorismo,
permite que as meninas mais novas, que se veem refletidas naquela figura,
também negra e do sexo feminino, criem uma referência positiva a respeito delas
próprias – e a respeito da possibilidade de se tornarem profissionais da área
da Ciência e da Tecnologia.
TEORIA TECNOLÓGICA DA EXCLUSÃO:
HÁ ESPAÇO PARA A DIVERSIDADE?
Está a questionar-se sobre a
pertinência da PretaLab? Então, voltemos aos números: calcula-se,
segundo uma pesquisa realizada pela Accenture Strategy, que a
tecnologia digital reflete cerca de 22,5% da economia mundial,
representando um montante de US$ 19,5 triliões. Prevê-se que a
percentagem suba para os 25% até 2020, alcançando os US$ 24,6 triliões. No
mundo ideal, não seria justo que o desenvolvimento do universo tecnológico
pudesse também ser alimentado por mulheres negras?
Já toda a gente constatou
(provavelmente) que a tecnologia se entranhou nas dinâmicas urbanas; está
presente em quase tudo. Diariamente, utilizamos aplicações móveis para todo o
tipo de coisas e esquecemo-nos que estas – além das suas funcionalidades –
trazem consigo uma bula gigantesca de contraindicações: visões
políticas, económicas e culturais; preconceitos; estereótipos; etc. A
grande maioria foi criada por homens brancos e heterossexuais, de classe média
alta e de classe alta. Alguma surpresa?
Segundo os dados divulgados
pelo Fórum Económico Mundial (The World Economic Forum), continua a
existir uma predominância de homens no setor da biotecnologia. Além disso, os
números revelam que, devido à crescente automatização laboral, as mulheres são
as primeiras a perderem o emprego: parece que a máquina substitui o
sexo feminino, mas não o masculino.
O panorama também difere quando
abordamos os dados dos homens negros bem-sucedidos ou das mulheres negras no
mundo tecnológico. Estas últimas fazem parte da minoria das minorias.
Continuando na ótica dos
estudos, a Algorithmic Justice League (Liga da Justiça do
Algoritmo) tem procurado denunciar o racismo que se encontra implícito em
programas de inteligência artificial. Segundo os dados revelados, foi detetada,
em programas de reconhecimento artificial, uma grande dificuldade em
identificar os traços de rostos negros.
A falta da diversidade étnica,
dentro das equipas que criam esses programas, foi a principal razão assinalada.
Se as séries de rostos que são criadas e inseridas no computador não são
diversas o suficiente, qualquer feição que se desvie da norma não será
reconhecida. Foram consultados documentos do FBI que revelaram que “o
reconhecimento facial é menos preciso em negros”. Apesar destas
descobertas, ainda não existem estudos independentes com testes para
viés racistas. (Como não?)
Enquanto as estatísticas, as
análises científicas e as políticas públicas ignorarem a importância da mulher
negra no mundo da tecnologia, estas vão continuar à margem das esferas de
decisão. Não é difícil perceber qual a consequência: segregação social
e laboral.
Segundo uma pesquisa económica,
divulgada pela Glassdoor, os empregos na área da Tecnologia,
Engenharia e Ciência foram os mais bem pagos, em 2017. O setor da tecnológico,
tal como apuramos anteriormente, é um meio de emancipação económica a nível
global. Contudo, continua a ser alimentado pela norma.
O desigual
acesso à educação e a perpetuação dos estereótipos e preconceitos insistem em
afastar as mulheres negras do mundo da educação, anulando a
possibilidade da criação de uma carreira profissional nestas áreas.
Com o intuito de analisar a
presença do sexo feminino – nos ramos da Ciência, Tecnologia e Engenharia – no
Brasil, na China, nos EUA e na Índia, a pesquisa americana Athena Factor 2.0 concluiu que as
mulheres abandonam a indústria da tecnologia porque são tratadas de forma
desigual e recebem salários menores do que os homens, admitindo que as
hipóteses de progressão de carreira são muito baixas. No Brasil, 29% das
mulheres inquiridas assumiram que se sentem estagnadas nos seus trabalhos; 22%
garantiram que pensam desistir da carreira a médio prazo. De acordo com o Centro de Inovação e Talento, 77% das
mulheres negras, inseridas em empresas de alta tecnologia, afirmaram que se
sentem extremamente “pressionadas”, porque precisam de provar a sua
competência mais do que os seus pares. Como é de senso comum, a exigência
laboral acima da média pode gerar ansiedade e causar graves problemas de saúde.
Tal como revelou o estudo Why so Few? (Porquê tão poucas?),
realizado em 2010, 27.576 mulheres negras obtiveram diplomas nas áreas da
Engenharia, da Ciência e da Tecnologia, representando 10,7% dos certificados
académicos concebidos a mulheres nos Estados Unidos da América. Contudo, apenas
1% das que conseguem emprego nessas indústrias é de raça negra. Conclusão:
mesmo que o acesso das mulheres negras ao ensino superior seja
significativamente maior em países como os EUA – quando comparado com países
como o Brasil – o racismo e o machismo continuam a impedir que estas
singrem no mercado de trabalho, segundo os dados apurados pela PretaLab.
O COMBATE ORGANIZADO: MULHERES
NEGRAS NA FILEIRA DA FRENTE
Felizmente, em países, no qual
o debate sobre a multiculturalidade é uma constante – como é o caso dos Estados
Unidos – têm sido criadas diversas iniciativas que desvendam a importância que
este assunto tem na agenda política, incentivando o debate e a discussão sobre
o mesmo. Hire More Women In Tech, Black Girls Code, Black Tech Women,
são apenas alguns dos nomes que as exemplificam.
No cenário brasileiro, os dados
que existem sobre o panorama das mulheres negras no setor da tecnologia e da
inovação encontram-se por apurar. A ausência de diversidade étnica pode
estar ligada a dois fatores: dificuldades ao acesso e falta de referências.
A maioria dos estudos sobre tecnologia e ciência estão redigidos em inglês e a
existência de políticas – públicas ou privadas -, que incentivem a aposta
nessas áreas são muito poucas, tal como mostra o levantamento realizado
pela PretaLab. Além disso, a falta de referência de casos de
sucesso de mulheres negras e indígenas brasileiras, nos contextos tecnológico e
científico, é também apresentada como um dos principais fatores que contribuem
para a taxa de desmotivação.
Vamos às boas notícias: parece
que a PretaLab veio para ficar. Com o imenso envolvimento que
a campanha recebeu, a expansão para algo mais duradouro e abrangente foi
inevitável. Como se pode ler na plataforma, foram “570 mulheres dos 17 aos 67
anos, com inserções e interesses vários, a maioria concentrados em inovação
(29,1%) e transformação social (14,6%)” que responderam à iniciativa, vindas
“das cinco regiões do país e de quase todos os estados”.
Assim, a PretaLab teve
a margem que precisava para se tornar aquilo que é hoje: uma plataforma
verdadeiramente inovadora para o setor da tecnologia no Brasil, que
realça a urgência de levar mais mulheres negras e indígenas para o mundo da
Ciência, de forma a que o meio deixe de ser associado a algo exclusivo para
o “masculino” (seja lá o que isso for) e para o “branco”.
“Tecnologia é a linguagem do
século 21. É política, é poder, é direitos humanos, é cidadania. É fim e é
meio. Tem que andar em conjunto com todas as outras causas e pautas, senão
estaremos sempre um passo atrás”.
— Silvana Bahia, diretora da
Olabi e idealizadora da plataforma PretaLab
Não é segredo que as mulheres representam,
globalmente, um aglomerado social altamente discriminado, mas a
interseccionalidade – ou teoria interseccional, que apresenta a
desigualdade social como uma lógica sistemática assente numa base
multidimensional – permite-nos olhar para esta problemática de uma
maneira ainda mais assustadora, mas também mais informada. Esta lógica coloca
em evidência a sobreposição de condições desfavoráveis face ao acesso à justiça
e igualdade sociais, o que significa que se ser mulher é difícil, ser
mulher e ser negra apresenta, ainda, maiores desafios.
É certo que o panorama global
tem vindo a ser modificado. Discutir, questionar, intervir, investigar,
desvendar são apenas alguns do verbos que assinalam a caminhada, em direção à
igualdade. Mesmo no Brasil, as mulheres têm investido na união, criando redes e
iniciativas de apoio que possam minimizar as disparidades sociais e
profissionais, dando voz ao sexo feminino no mundo da tecnologia. Não nos
podemos esquecer que todas as mulheres, independentemente do credo,
da religião, da cor de pele ou etnia, têm o direito (e dever) de deixar
uma indelével marca na batalha pela sua emancipação.
Artigo redigido pelas jornalistas do portal da Conexão Lusófona
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