De Dominique Azevedo, por Mônica Aguiar
Ao ler a entrevista da jornalista Donminique Azevedo do
Portal Correio, com Tatiana Nascimento, fiquei fascinada com o potencial da conversa e sua relevância para todos os leitores.
O Conteúdo apresentado é uma grande contribuição para formação e informação de todas e todos.
Doutora em estudos da tradução pela Universidade Federal de
Santa Catarina, na interface acadêmica se interessa pelas poéticas,
performances, políticas negras diaspóricas e suas traduções de autores e
autoras negras. Seu primeiro livro teve tiragem de 300 exemplares feitos à mão. Isso mesmo: costurados artesanalmente. Ela é
palavreira: poeta, compositora, cantora, tradutora, editora de livros
artesanais, zineira e blogueira.
Minha palavra poética tem sido soprada pelos ventos assim:
feito brisa, feito furacão.
Segue ........
“ Interessa-me muito pensar a literatura (e outras artes
narrativas, como o cinema, o teatro) como ao mesmo tempo máquina de repetição e
máquina de ruptura. De repetição porque as artes narrativas em geral, quando
produzidas desde corpos/subjetividades hegemônicas, insistem na representação
do povo negro como sujeito preferencial da violência – seja reprodutor da
violência, e aí o estigma bandido/puta/empregada exemplifica; seja alvo da
violência, e aqui tô falando de como as mídias mediadas por ecrã (televisão,
novela, seriado, telejornal, cinema) têm um sadismo visual operante que adora a
exposição/exploração de corpos negros violentados, mortos, machucados,
encarcerados.
Mas a literatura e as artes narrativas também podem ser
máquinas de ruptura desse padrão, e aí vejo com muita alegria que quando
subjetividades/corpos subalternizados produzem novas narrativas – ou fazem
arqueologia simbólica de narrativas ancestrais igualmente libertadoras,
contestadoras – os mundos novos que isso cria não ficam restritos ao campo do
imaginário, das letras, das cenas, mas alimenta os horizontes do possível, da
renovação, jogam no mundo espelhos onde o povo preto pode se mirar em lugares
que não os estereotipados.
Nesse sentido, essas escritas negras (ou sobre negritude, uma
vez que tem muita gente tentando descolonizar seus imaginários da presença
racista na hora de produzir novos conteúdos literários/visuais artísticos, e
tem gente negra e gente não-negra fazendo isso, algumas não-negras até
acertando) operam de maneira mágica, simbólica, e concreta dessa forma
especular: e isso me lembra o abebe de Oxum (a despeito de toda interpretação
mais recorrente e heteronormativa que insiste em dizer que ela se mira porque é
vaidosa), essa ferramenta de autoconhecimento, de olhar a si mesmo pra saber-se
quem é e ainda, porque o espelho mostra também em segundo plano o que tá atrás,
olhar o passado: de onde se veio.
Aprendi essa interpretação com a ativista Elisia Santos, em
2009, quando Naiara Leite me convidou pra o primeiro Encontro Nacional de
Jovens Negras Feministas, e fiquei matutando isso até poder escrever minha tese
de doutorado, em 2011/2014, sobre o tema. E acho que essa própria virada dentro
do pensamento negro sobre nossas narrativas mais fundamentais, como são os
itans, tão relacionadas aos processos de descolonização do nosso imaginário, às
estratégias de sair do lugar-comum das representações sobre negritude e
construir outros mundos possíveis: no plano imaginado/discursivo, primeiro,
como que pra que isso já dê alguma materialidade aos mundos antirracistas que
estamos tratando de construir aqui há 500 anos (de forma sistemática,
organizada), né?
Atualmente o rolé “nós por nós” na produção literária se
intensificou e isso, talvez, está relacionado à produção de conteúdo ter se
democratizado com os vários acessos econômicos que três gestões federais de
esquerda, no governo do País, significaram, bem como o avanço de algumas
políticas afirmativas pra grupos subalternizados nessas gestões. Ao mesmo tempo
em que, na última gestão especialmente, povos indígenas e quilombolas
enfrentaram retrocessos graves em termos de demarcação territorial e garantia
ao direito de viver!!! De viver, sem consolidação de políticas públicas
garantidas, e isso conta pra gente que, sim, foram governos cheios de falhas e
ainda conectados com agendas políticas conservadoras e povos tradicionais estão
morrendo por causa disso.
No campo literário tem editoras mais recentes, como a própria
Padê Editorial, que montei com Bárbara Esmenia em 2016, a Ijumaa, em SP; a
Ogum’s Toques, em Salvador, Malê Edições, entre várias outras, que estão
ampliando o território conquistado nesse quilombismo literário, engrossando o
caldo de projetos pioneiros como a Mazza e a Nandyala, ambas editoras de
mulheres negras, renovação no mercado editorial colonial que o Brasil ainda
tem; protagonismo narrativo preto-afirmado; transformação da política da
denúncia (necessário e ao mesmo tempo labiríntico) pela política do anúncio
(nós falando de nós de forma efetivamente plural, de muitas vozes, muitas
realidades, muitas negritudes, muitas possibilidades); a própria noção de
escrita negra como vingança, como Conceição Evaristo bem definiu; mas uma
vingança que é quase uma oferenda, que não é sobre retaliar o outro, é sobre
ressaltar o “a gente”, nos definir por nós mesmas, enquanto povo preto em
diáspora: isso faz parte desse impacto.
Impacto que começa a ser mensurado agora, quando você vê que
uma escolinha tem livros com personagens negras em que as crianças negras podem
se mirar; rappers negras de 10, 11 anos falando sobre sua negritude de forma
plena, afirmada, feliz, celebrativa, em resistência; e daqui uns anos vai estar
mais consolidado em termos de autoestima, autorrepresentação, de formas mais
subjetivamente imensuráveis mas coletivamente frutíferas no sentido de permitir
que a gente, enquanto povo, seja nosso próprio griô. a história dos opressores
nunca mais é a mesma, depois de ser contada do ponto de vista de quem resiste:
nem eles vão seguir sendo “os senhores”, nem a gente “os escravos”, e isso o
Oliveira Silveira já tinha avisado, né?
Somos um povo letrado. muitas culturas negras se
fundamentarem na oralidade da palavra não significa que as letras impressas não
nos digam respeito, muito do avesso: e a Revolução dos Malês ensinou isso
séculos atrás, que dominamos também as artes escritas, com maestria.
E esse é um lugar de disputa estratégico numa sociedade
fundamentada no grafocentrismo, como a nossa, e que tem ainda um projeto
elitista e urbano de apagamento e padronização linguístico com um português
brasileiro hegemônico, sudeste-orientado.
A cultura do rap taí há décadas pra
dizer isso: nós, povo preto, somos um povo letrado, escrevemos,
cantamos/contamos nossa própria história, e disputamos representação histórica
dentro do campo da palavra. É uma guerra, né? Mas chegamos nela com tecnologias
ancestrais que vão de pedras a flores. Literatura é semente, aquela pessoa
minúscula que traz dentro de si o futuro de um baobá. Mesmo a linguagem sendo
tão frágil, mal permitindo a gente se entender, ela ainda é mágica. E, na
moral, de magia a gente entende também.
Herdei de minha mãe, uma paraense escorpiana, uma grande
sorte e senso de organização (ela é bibliotecária). De meu pai herdei minha
negritude resistente e a graciosidade das palavras: ele é um libriano típico,
cantor, compositor, trocadilhista, e que nunca abaixou a cabeça pra polícia na
hora dum baculejo.
Te digo isso pra te dizer que no campo da palavra, falada
escrita ou cantada, eu não enfrentei nenhum obstáculo até hoje além de mim
mesma: uma enorme timidez que às vezes é imobilizante e silenciadora, e essa
aparência, esse corpo gordo que não é escuro o bastante pra ser reconhecido
como negro em muitos ambientes mas que é escuro o bastante pra ser considerado
de servente.
Algumas vezes aconteceu de eu chegar num lugar pra me apresentar,
ser a palestrante convidada, ou a poeta residente e as pessoas me confundirem
com a copeira, pedirem água, cafezinho.
Especialmente em espaços
institucionais/acadêmicos.
Que bom que a elite branca não me toma como uma de
suas pares e me reconhece como quem eu sou: uma pessoa negra.
Com os
estereótipos e lugares sociais que costumam destinar pra gente. Quando isso
aconteceu eu só respondi indo fazer o trabalho pro qual tinha sido chamada. De
resto, os obstáculos são aquelas provas que 500 anos de colonização racista e
sexista já nos acostumara a enfrentar, e são estruturantes: falta de
credibilidade à produção, questionamento quanto à qualidade do conteúdo,
acusação de panfletarismo, demanda de imparcialidade…
Quando terminei o doutorado e resolvi dar um tempo na
produção acadêmica pra me dedicar à minha poesia e minhas canções ficou tudo
mais fácil na real, porque é sobre a minha própria palavra voar num céu que é
convidativo pra ela: sarau, slam, roda de conversa, espaços de formação
não-escolarizados, festival de compositoras…
Na universidade era de “você como
lésbica negra falando sobre escrita de lésbicas negras… seu texto é muito
tendencioso”, ou “não conhecemos essas autoras, fica difícil avaliar seu
trabalho” pra baixo.
Acho ainda difícil concorrer com a noção tradicional de
poesia (algo elitista, burguês, que se fala num café chique) quando vou
participar de algum edital, e vejo quem geralmente é selecionada pra
eventos/publicações de poesia, mas sei lá, me formei na escola do
faça-você-mesma: se não tem espaço pra mim aqui, vou ali e faço meu próprio
espaço. Quilombismo como modo de vida, mesmo.
A Padê Editorial é muito isso, uma editora de livros
artesanais pra publicarmos outras autoras negras y/ou fanchas, viadas, trans e
travas. Os primeiros livros foram “{Penetra-Fresta}”, de Bárbara (SP), depois
meu “Lundu,” (DF), depois “Interiorana”, da Nívea Sabino (MG), mais
recentemente “Tautologias”, da Daisy Serena (SP também).
..............................
Acho massa poder combinar no projeto editorial da
Padê forma e conteúdo. Rede de produção, de divulgação e de circulação. Pensar
numa coisa que seja sobre negritude e sobre dissidência sexual e que conteste
as grandes normas de produção editorial e o mercado do tempo mecanizado, do
ritmo maquinário.
Minha palavra poética tem sido soprada pelos ventos assim:
feito brisa, feito furacão. Publico zine, publico blog, publico livro, solto
palavras ao vento, envio áudio-poema pra uma amiga que tá triste, recebo
vídeo-poema de uma amiga quando tô triste (o racismo, a lesbofobia, a falta de
emprego, a falta de carinho, a extinção de outras espécies deixam a gente muito
triste às vezes).
Encontro num sarau em outra cidade aquela poeta que eu só
tinha lido num livro na casa de uma amiga, a gente se abraça, eu digo como
gosto da poesia dela e ela diz que conhece a minha e que gosta também!
A força
da minha palavra poética, eu acho, tá em reconhecer que somos frágeis: esse
projeto de mundo é frágil, nossos corpos são frágeis, o tempo nos torna cada
vez mais quebradiças e o vento leva tudo embora, até as palavras.
E aprendemos
a sobreviver juntas: compartilhando axé, compartilhando comida, compartilhando
semente, compartilhando palavra, compartilhando futuro. Talvez a força taí :
viver em comunidades de palavras, e lutar por encher elas de sentido, de
combinar elas com as práticas. Porque também só falar não adianta, né?
Fonte Correio Nagô /Fotos Paulinha Moraes e Geovanna Bembon
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