Dra.Cida Bento |
Por Cida Bento, Folha de S.Paulo, 2 abr 2020
Assistindo a programas jornalísticos sobre a
Covid-19, nas redes de televisão, é possível observar que nunca é mencionado o
sistema que oferece a maioria dos dados, imagens e especialistas que aparecem e
dão consistência às reportagens: o SUS —Sistema Único de Saúde.
Por que o SUS, tão presente em nossas vidas neste
momento, vem sendo invisibilizado? A marca SUS praticamente não aparece nas
fachadas dos hospitais públicos, ou em seus ambulatórios e centros cirúrgicos,
ou nos jalecos dos médicos, ou nas ambulâncias do Samu, nos uniformes dos
socorrista...?
Um sistema responsável, diretamente, pela saúde de
mais de 150 milhões de pessoas, desenvolvendo ações de vigilância,
disponibilizando medicamentos e fazendo atendimentos de alta complexidade, que
beneficiam praticamente todos os brasileiros, e estudado e replicado em
diversos lugares do mundo. Por que o silêncio sobre o SUS?
Custeado pela União, estados e municípios, o SUS é
um sistema público, gratuito, universal; é um direito social, e provavelmente
por essa razão vem sendo invisibilizado e atacado.
Caco Xavier e Paulo Capel Narvai destacam em
excelente artigo que há um investimento na desconstrução da marca do SUS para
viabilizar negócios transformando cuidados de saúde em mercadorias. Para isso,
é necessário produzir uma imagem negativa do SUS, e atacá-lo.
Pudemos acompanhar esses processos de ataque às
políticas públicas, em particular ao SUS, no descredenciamento de laboratórios
que forneciam medicamentos de alto custo para pacientes transplantados e no
encerramento do Programa Mais Médicos, o que afetou milhões de pessoas.
É preciso lembrar que grande parte de nossa
população mora em favelas e depende quase exclusivamente do SUS (80%) para ter
acesso a serviços na área da saúde. Segundo o IBGE, 52,1 milhões de brasileiros
vivem com uma renda domiciliar per capita de R$ 387 mensais (2016). E essa
pobreza atinge principalmente crianças e adolescentes de 0 a 14 anos (42%),
homens e mulheres negras (67%) e mulheres negras chefes de família com filhos
(64%).
A maior parte dos serviços de saúde em favelas
ocorre em unidades de Atenção Primária de Saúde, cujo trabalho envolve a
atuação de equipes de saúde da família e de agentes comunitários de saúde,
segundo o Dicionário de Favelas Marielle Franco. Esse último é um programa
criado em 1991 objetivando melhorar o acolhimento dos usuários do sistema de
saúde, com pessoas da própria comunidade treinadas para exercer funções no
sistema e encaminhar os pacientes para profissionais especializados.
O grande objetivo é o fortalecimento da atenção
básica, que desloca o foco do sistema de saúde da cura para a prevenção, com
menor custo e mais interação com a comunidade. Esse objetivo se choca
frontalmente com a intenção evidente do governo de privatizar a atenção básica
de saúde, no país.
Assim é que mais de 25 organizações da sociedade
civil ingressaram, em 17/3, no STF, solicitando suspensão imediata da emenda
constitucional 95 —aquela referente ao congelamento dos gastos públicos por 20
anos— argumentando que o desmonte sistemático da “rede de proteção social”
construída no Brasil ao longo dos últimos anos —onde se encontra o SUS—
torna-se hoje grave obstáculo para o enfrentamento eficaz da pandemia de
coronavírus, podendo levar o sistema de saúde e outras políticas sociais ao
colapso.
Esse cenário nos leva a relembrar o que Achille
Mbembe definiu como “necropolítica”
—que se explicita quando os governos decidem sobre
quem viverá e quem morrerá, e mais, de que forma viverão e morrerão.
Cida Bento
Diretora-executiva do CEERT (Centro de Estudos das
Relações de Trabalho e Desigualdades), é doutora em psicologia pela USP
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