terça-feira, 3 de março de 2020

Nós, mulheres negras, vamos parir uma nova cidade, por Mônica Cunha

As regiões em que houve redução de homicídios, em sua maioria, não apresentaram o aumento de mortes praticadas pelas polícias, evidenciando que a associação destes dados não passa de retórica oportunista

Por Mônica Cunha*
A Segurança no estado do Rio de Janeiro foi tema central do debate público em 2019. De um lado, o Governador Wilson Witzel defendeu a sua política do abate, que elevou em 30% o número de pessoas mortas pelas forças policiais no estado, do outro, mães – que, assim como eu, perderam seus filhos em razão da violência policial –, parlamentares, pesquisadores e movimentos sociais passaram a denunciar o genocídio do jovem negro, que está em curso com o aval dos chefes do executivo estadual e federal.
Falamos em genocídio para chamar a atenção para o fato de 75% das pessoas assassinadas no país serem negras. Esse cenário, revelador do racismo estrutural brasileiro, é observado em todos os recortes possíveis, das vítimas da violência letal do estado (75,4%) aos policiais vítimas de homicídio (51,7%, sendo que os negros representam apenas 34% do efetivo das polícias em todo o Brasil). O resultado desta política de segurança que mata nos dois lados do front é sempre o mesmo: mães, na sua maioria negras, chorando a perda dos seus filhos.
Numa conjuntura em que a verdade e a ciência são relativizadas, não nos estranha a tentativa de manipulação dos dados ao associar a queda de homicídios à política do abate, como fez Witzel, mas é necessário que denunciemos a mentira propagada pelo governador.
Antes de mais nada, a queda de homicídios, em 2019, não foi um fenômeno exclusivamente fluminense. Em levantamento realizado pelo Núcleo de Estudos da Violência da USP juntamente com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, observou-se que em todos os estados brasileiros houve queda no número de homicídios de janeiro a setembro de 2019, o que revela uma tendência nacional, sendo o estado do Ceará o recordista, com queda de 52% nos índices de homicídios. E lá não tem governador bravateiro estimulando “tiro na cabecinha” nem comemorando como um gol a execução de uma pessoa.
O próprio Ministério Público, órgão responsável pelo controle externo da atividade policial, realizou um estudo cuja conclusão desmente o governador. Ao analisar individualmente os dados de cada uma das 39 Áreas Integradas de Segurança Pública (AISPs), o Centro de Pesquisas do MP afirma que as regiões em que houve redução de homicídios, em sua maioria, não apresentaram o aumento de mortes praticadas pelas polícias, evidenciando que a associação destes dados não passa de retórica oportunista dos responsáveis pela política de segurança, sem nenhum respaldo científico.
O aumento da violência policial e sua defesa enfática pelo governador se torna ainda mais perversa diante do desmonte das políticas públicas na cidade do Rio. Como coordenadora da equipe da Comissão de Direitos Humanos da Alerj, presidida pela deputada Renata Souza, atendi famílias destroçadas por essa política genocida e que necessitavam de atendimento especializado, tais como psicológicos e psiquiátricos, mas não conseguiam em razão da precariedade dos serviços de saúde. Essas famílias precisaram do apoio e encaminhamentos dados pela Comissão de Direitos Humanos para acessar direitos que deveriam ser de todas e todos.
As pessoas nos procuram na Comissão em razão de inúmeras violações de direitos, muitas delas sem relação com a política de segurança, mas um padrão se repete, independentemente da demanda apresentada: 60% das pessoas que nos procuram são mulheres, na sua grande maioria negras, que procuram os seus direitos ou de seus familiares. Esse padrão se repete há anos, evidenciando que uma política de Direitos Humanos que se propõe séria precisa ter um olhar diferenciado para a escuta e acolhimento das mulheres negras, pois, como diz Angela Davis, “quando uma mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”. Somos a base da pirâmide!
É por isso que nós, mulheres negras, mães de vítimas da violência do Estado gritamos: nós não queremos uma cidade túmulo! Nos organizando, vamos parir um novo país.        
*Coordenadora da equipe da Comissão de Direitos Humanos da ALERJ e fundadora do Movimento Moleque que reúne mães e familiares de jovens criminalizados ou assassinados.

Fonte: Fórum 

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