sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Impacto negativo da concentração de renda é maior para as mulheres

Por Andréa Martinelli

Trabalho doméstico realizado pelas mulheres, se fosse contabilizado, agregaria US$ 10,8 trilhões à economia mundial anualmente


Milhões de mulheres e meninas passam parte de suas vidas desempenhando trabalho doméstico e de cuidado ― como lavar, passar, cozinhar e cuidar de crianças e idosos ―, sem nenhum tipo de remuneração e sem acesso a serviços públicos, enquanto o número de bilionários dobrou na última década.
A constatação é da ONG britânica Oxfam, registrada em relatório divulgado nesta semana, às vésperas da abertura do Fórum Econômico Mundial em Davos, na Suíça, ponto de encontro entre a elite política e econômica global.
Se fosse contabilizado e remunerado, esse trabalho agregaria pelo menos US$ 10,8 trilhões à economia mundial todo ano, estima a ONG. Cerca de 42% das mulheres no mundo em idade economicamente ativa estão fora do mercado de trabalho porque estão cuidando de alguém. Entre os homens, a fatia é de 6%, um número exponencialmente menor.
Relatório aponta que, as mulheres, especialmente as mais pobres, sustentam não apenas a economia de mercado, uma mão de obra barata e gratuita, mas também o Estado, ao prestar serviços que deveriam ser oferecidos por ele. O trabalho aponta que a desigualdade econômica está fora de controle e uma das razões para aprofundar o abismo entre ricos e pobres é um sistema econômico mundial falho e sexista.
“O cuidado é uma responsabilidade de Estado: garantir o acesso à creche, à saúde, à educação, e garantir a assistência social para a terceira idade. E é possível observar que, em detrimento do crescimento da economia, essa riqueza que está cada vez mais se concentrando e políticas públicas fundamentais estão sendo perdidas”, afirma Katia Maia, diretora da Oxfam Brasil ao HuffPost. 
Dados mostram que, em 2019, os 2.153 bilionários do mundo detinham mais riqueza que 4,6 bilhões de pessoas ― o equivalente a 65% da população global, estimada em pouco mais de 7 bilhões ― e que os 22 homens mais ricos do mundo detêm mais riqueza do que todas as mulheres que vivem na África. 
“A pesada e desigual responsabilidade pelo trabalho de cuidado perpetua as desigualdades de gênero e econômica”, afirma o relatório que se baseia em dados compilados pelo estudo “Global Wealth”, do banco Credit Suisse. “As tarefas diárias de cuidar de outras pessoas, cozinhar, limpar, buscar água e lenha são essenciais para o funcionamento da economia. A desigual responsabilidade desse trabalho, que recai sobre as mulheres, perpetua as desigualdades de gênero e econômicas”, diz o texto.
O texto ressalta ainda que “o modelo de capitalismo dominante explora e impulsiona crenças sexistas tradicionais que ‘desempoderam’ mulheres e meninas”, por impor a elas a função do cuidado, que não é entendido como trabalho e, por isso, invisibilizado. Este modelo também valoriza a riqueza de poucos em detrimento das horas dedicadas ao cuidado de pessoas nos lares, indica o estudo. 
Para a diretora da Oxfam Brasil esse trabalho realizado pelas mulheres é essencial para manter comunidades e precisa deixar de ser invisível para governos e empresas. Segundo ela, é essa atividade, que é entendida como um trabalho de reprodução da vida, que garante o crescimento da economia, mas com mão-de-obra mais barata ou gratuita. 
“E o no caso do Brasil, a situação é pior para as mulheres negras. A questão do racismo ainda é um vetor que, em muitos casos, determina lugares inclusive econômicos na nossa sociedade”, afirma ao HuffPost.  
É um trabalho praticamente invisível no sentido do reconhecimento. Existe uma economia que segue pujante no mundo, mas que pode-se dizer que só cresce às custas dos direitos das mulheres.
Katia Maia, diretora da Oxfam Brasil
No Brasil, segundo a diretora da Oxfam, o trabalho de cuidado é 90% realizado por familiares, e exercido majoritariamente por mulheres, que chegam a exercer 85% dessa atividade, informal e precarizada. Essa informalidade, aponta Katia, significa a ausência do Estado, pela oferta insuficiente de creches para cuidar das crianças ou de um sistema de saúde adequado para atender idosos ou pessoas com problemas crônicos.
“Há necessidade urgente de a gente fazer um debate, alimentado pelo governo, sobre a importância do papel da mulher na economia, da divisão de tarefas, de responsabilidades dentro do lar, no cuidado. Mas a gente não está, infelizmente, em um cenário para isso”, pontua, se referindo às políticas do governo Bolsonaro.
O relatório da Oxfam ressalta um dado da OIT (Organização Internacional do Trabalho), que afirma que até o ano de 2050 haverá 100 milhões a mais de idosos e 100 milhões a mais de crianças de 6 a 14 anos no mundo, o que provocará um aumento da necessidade de equipamentos e trabalhadores de cuidado. Em países como o Brasil, com a redução de recursos para políticas sociais, diz Katia, o indicador é preocupante.
O mundo está se tornando cada vez mais conservador, o que reitera que o lugar da mulher é no lar, e isso é muito preocupante.
Katia Maia, representante da Oxfam Brasil
O estudo não cita diretamente a divisão sexual do trabalho e a jornada dupla, mas afirma que os governos dos EUA e do Brasil estão entre as lideranças que “propõem políticas que reduzem impostos para bilionários, dificultando o enfrentamento da emergência climática ou acirrando o racismo, o sexismo e o ódio por minorias”.
“O mundo está se tornando cada vez mais conservador, o que reitera que o lugar da mulher é no lar, e isso é muito preocupante. A mulher não nasceu para ser do lar. As responsabilidades, seja do trabalho doméstico ou mesmo do cuidado, devem ser compartilhadas entre homens e mulheres.”
Outro ponto destacado pela ONG são as mudanças climáticas, tema que está no centro da discussão mundial e será debatido em Davos. De acordo com a Oxfam, essa crise tende a piorar as condições de trabalho das cuidadoras. Estima-se que até o ano de 2025, 2,4 bilhões de pessoas poderão viver em áreas sem água suficiente.
Para a Oxfam, nesse cenário negativo, mulheres acabam impossibilitadas de alcançar posições longe do trabalho doméstico e cargos de poder no mercado de trabalho. Entre os cuidadores, os trabalhadores domésticos são uma das categorias mais “exploradas do mundo”. Apenas 10% são protegidos por leis trabalhistas, diz a Oxfam. No Brasil, a PEC das domésticas regula este tipo de trabalho desde 2013, mas sua implementação ainda é falha.
“Essas mulheres, muitas vezes, fazem esse trabalho doméstico ou ficam em casa cuidando de pessoas doentes porque não tem outra opção. Porque não tem um serviço do estado que cuide e permita a essas mulheres se realizarem pessoalmente em outras áreas”, diz Katia. ”É importante que elas tenham outra opção, que não sejam jogadas a somente cuidar e fazer trabalho doméstico.”

Os caminhos para diminuir a desigualdade

Diante desse panorama, o relatório apresenta soluções e alerta governos para construir uma economia humana que beneficie “99% e não apenas o 1% da população mundial”. Entre as propostas destacadas, está o chamado “marco transformador dos ‘4R’”, que propõe ao Estado reconhecer, reduzir, redistribuir e representar cuidadoras marginalizadas em frentes econômicas e sociais.
O relatório aponta ainda que movimentos liderados por mulheres têm feito a diferença. Um dos destacados é o movimento liderado por Engna Legna Besdet, no Líbano, assim como a campanha Domestic Workers Rising (Trabalhadoras domésticas em ascensão, em tradução livre), na África do Sul, em que mulheres estão exigindo mudanças e reivindicando políticas públicas.
″É importante mostrar que tem solução. Há caminho, a solução é perfeitamente possível porque todos esses problemas e desafios foram criados pelas próprias sociedades, pelos próprios governantes, pelos tomadores de decisão”, diz Katia. “E no caso do poder político o que falta para que a vontade [política esteja presente] é realmente a pressão da sociedade.”
Fonte:huffpostbrasil

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