A cada quatro horas uma menina de até 13 anos é vítima de violência sexual, aponta o 13º Anuário Brasileiro de Segurança Pública.
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“A diferença deste ano é que conseguimos acessar dados mais específicos, o que possibilitou um melhor entendimento sobre tanto quem é a vítima, quanto qual é o perfil do agressor e do local em que essa violência acontece”, explica Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FSB), em entrevista ao HuffPost.
Só em 2018, o País atingiu o recorde de registros de estupros. Foram 66 mil vítimas, o equivalente a 180 estupros por dia ― maior número deste tipo de crime desde que o relatório começou a ser feito, em 2007.
Ainda segundo o relatório, a maioria das vítimas é menor de idade, do sexo feminino e este tipo de violência acontece dentro de casa. A cada quatro horas, uma menina com menos de 13 anos é estuprada no Brasil por um conhecido. Em sua maior parte, as vítimas são negras (50,9%).
Enquanto acharmos que falar de sexualidade é uma prerrogativa exclusiva da família, estaremos incentivando estupro no Brasil. Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum de Segurança Pública.
“Eu penso que o aumento não é só reflexo de uma violência que acontece. Os números aqui analisados são apenas a face mais visível de um enorme problema”, aponta Bueno. Ela destaca que, nos últimos anos, o tema da violência de gênero entrou na agenda da imprensa e do Judiciário ― o que causou um efeito positivo quando as estatísticas são analisadas.
O estudo mostra que parte significativa dos estupros que ocorrem no Brasil é o de vulnerável ― contra crianças menores de 14 anos ou pessoas com doenças ou deficiência mental que não têm discernimento para a prática do ato e que não podem oferecer resistência ―, um total de 63,8% das vítimas.
Violência contra a mulher e feminicídios
Além do crescimento da violência sexual, o anuário contabiliza alta dos homicídios contra mulheres em razão de gênero, o chamado feminicídio, descrito no Código Penal, após alteração feita pela Lei nº 13.104, em 2015.
Em 2018, 1.206 mulheres foram vítimas de feminicídio, uma alta de 4% em relação ao ano anterior. De cada dez mulheres mortas, seis eram negras.
A faixa etária das vítimas é mais diluída: 28,2% têm entre 20 e 29 anos, 29,8% entre 30 e 39 anos. E 18,5% entre 40 e 49 anos. Nove em cada dez assassinos de mulheres são companheiros ou ex-companheiros.
A maioria dos crimes é praticado contra meninas de 10 a 13 anos, cerca de 28,6%. O relatório ainda aponta que 96,3% dos autores do crime de estupro são do sexo masculino, e que em 75,9% dos casos eles são conhecidos da vítima. Este padrão indica que o crime costuma acontecer dentro da própria família, diferente da ideia de que o estupro é cometido à noite, na rua e por um homem desconhecido.
“Esse aumento [de registros] acontece porque o tema da violência de gênero entrou na agenda da imprensa, do Judiciário e do movimento feminista. Hoje as mulheres estão mais seguras para falar, o que estimula a denúncia”, diz a especialista.
Entre os motivos para a baixa notificação, Bueno destaca o medo de retaliação por parte do agressor (que é geralmente conhecido da vítima), o receio de julgamento e o descrédito nas instituições policiais e de Justiça.
A gente, enquanto sociedade, ainda é muito moralista em relação à violência sexual. Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum de Segurança Pública.
“O primeiro passo que se faz quando da denúncia deste tipo de crime, seja por uma mulher ou menina, é duvidar da palavra da vítima”, explica.
Outra pesquisa produzida pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2016, mostrou que 43% dos brasileiros do sexo masculino com 16 anos ou mais acreditavam que “mulheres que não se dão ao respeito são estupradas”.
Para a pesquisadora, a saída para combater este tipo de crime vai além da criação de tipos penais e passa, principalmente, pela educação. “Enquanto acharmos que falar sobre sexualidade é prerrogativa exclusiva da família, estamos incentivando o estupro no Brasil.”
Em entrevista ao HuffPost, Bueno explica o resultado da pesquisa e chama atenção para o panorama da violência sexual contra meninas no Brasil. Para ela, o País avançou no combate à violência doméstica e ao feminicídio, mas anda a passos lentos quando o tema é violência sexual.
HuffPost: O relatório deste ano mostra que são registrados por dia cerca de 180 estupros no Brasil. O que esses dados podem dizer sobre como o País trata a violência sexual?
Samira Bueno: A diferença deste ano é que conseguimos acessar esses dados mais específicos, o que possibilitou um melhor entendimento sobre tanto quem é a vítima, quanto qual é o perfil do agressor e do local em que essa violência acontece. E esses são os dados que mais chamam atenção no relatório por conta do perfil da vítima. Nós estamos falando basicamente de meninas, de crianças. 53% das vítimas tinham, no máximo, 13 anos. Já no caso dos meninos, que o número é menor e também invisível, o auge da violência se dá aos 7 anos de idade.
O número de 180 estupros por dia é muito alto. Mas especialmente porque a gente está falando de uma violência que tem uma característica específica: ela ocorre no âmbito doméstico. São crianças que estão sendo violadas dentro de casa por algum conhecido, por alguém em que elas confiam, que elas têm um vínculo. E é difícil, em um país moralista como o Brasil, aceitar que o ambiente doméstico pode ser tão violento e hostil. Para uma sociedade moralista e que diz prezar tanto pela família, é um tabu reconhecer esta violência.
A que se deve o aumento e a subnotificação deste crime?
O que divulgamos agora no anuário são as estatísticas com base nos registros policiais. E para ter um registro como este, você precisa que uma vítima vá até uma delegacia para o fato se transformar em um boletim de ocorrência e, então, em estatística. Todos esses dados são frutos dos boletins de ocorrência produzidos pela Polícia Civil em todo o território nacional.
Mas existe uma enorme subnotificação: seja porque a vítima teme uma retaliação do parceiro, seja por vergonha ou constrangimento, pela falta de confiança que a Justiça e a polícia vão acreditar na palavra dela e dar continuidade ao caso ― o que acaba refletindo em níveis muito altos de subnotificação neste tipo de crime.
E, então, o aumento desse número não é só reflexo de uma violência que acontece. Os números aqui analisados são apenas a face mais visível de um enorme problema. A gente, enquanto sociedade, ainda é muito moralista em relação à violência sexual. O primeiro passo que se faz quando da denúncia deste tipo de crime, seja por uma mulher ou menina, é duvidar da vítima.
Eu acredito que parte do aumento [de registros] acontece porque o tema da violência de gênero entrou na agenda da imprensa, do Judiciário e do movimento feminista. Fruto disso é um movimento de mulheres que se sentem mais seguras para falar sobre isso, o que, de certa forma, estimula a denúncia. Mas hoje, ainda, se uma mulher chega à delegacia com o olho roxo, ela é atendida de uma forma; se ela chega alegando que foi estuprada, e essa violência não tem resquícios e provas, cria-se um ciclo de revitimização.
A razão para o aumento deste número se dá por uma questão cultural ou pela ausência de políticas públicas no País sobre este tema?
Olha, o Estado tem responsabilidade de intervir. E eu acho que é aí que fica o nosso desafio [do Fórum de Segurança Pública] em trazer esses números e colocá-los em evidência. Não podemos achar que por ser uma violência que acontece no ambiente doméstico, o Estado não tem nada a ver com isso.
E eu acho que, culturalmente, a gente avançou mais no debate sobre a violência doméstica e feminicídios ― pensando em tudo o que traz a Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio ― do que sobre crimes sexuais. Acho que essa questão ainda é um tabu. Esse é um debate que a gente ainda não fez.
E, no caso das crianças, a nossa legislação versa sobre este crime, o estupro de vulnerável, que criminaliza relações sexuais com menores de 14 anos, independente de haver o consentimento ou não. Então, esse entendimento existe por parte do Estado: de que não há o que consentir se você não tem capacidade de fazê-lo sendo tão jovem. Mas o que vemos hoje, ainda, são respostas práticas muito frágeis para combater este tipo de violência.
O combate à violência sexual, então, passa pela educação?
Esta é uma questão. E, quando a gente olha para o perfil da vítima, e para a ação do governador João Doria na última semana, de recolher apostilas que falavam sobre identidade de gênero, sexualidade e prevenção da gravidez ― que é confundido hoje com o que é entendido como “ideologia de gênero” ―, mostra o quanto estamos atrasados e conservadores nesse assunto.
Ora, se a maior parte das vítimas é criança, a gente não vai superar essa questão se a gente não falar de educação sexual nas escolas. Até porque muitas dessas crianças só vão entender o que é uma violência falando sobre ela, entendendo o que pode e o que não pode. Essa ideia de que a família é o único ator legítimo para educar sobre sexualidade é uma falácia.
Os dados deste ano desmistificam a ideia de que o estupro ocorre apenas em um beco, à noite, com mulheres adultas, por parte de um homem que vai te pegar à força. Essa não é a característica dos estupros no Brasil. Aqui, ele acontece dentro de casa e o criminoso pode ser um tio, primo, padrasto.
Se esse jovem não está aprendendo sobre sexualidade na escola, ele vai buscar essa informação em outros lugares e nem sempre ela será a mais qualificada. Enquanto acharmos que falar sobre sexualidade é prerrogativa exclusiva da família, estamos incentivando o estupro no Brasil.
Fonte: de 16/09/10 em Huffpostbrasil
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