domingo, 12 de dezembro de 2010

Ser por meio dos outros: o ubuntu como cuidado e partilha

( de Jose ricardo )

Para o ethos do ubuntu, uma pessoa não só é uma pessoa por meio de outras pessoas, mas também por meio de todos os seres do universo. Cuidar “do outro”, portanto, também implica o cuidado para com a natureza (o meio ambiente) e os seres não humanos, afirma o filósofo e psicólogo sul-africano Dirk Louw

Por: Por Moisés Sbardelotto | Tradução Luís Marcos Sander

Não apenas ser porque tu és, mas também ser por meio de ti: essa é, em resumo, a ética ubuntu, segundo Dirk Louw, psicólogo e filósofo da África do Sul. Por isso, afirma, “ser humano significa ser por meio de outros”, sejam estes vivos ou mortos, humanos ou não.


Em um sentido mais geral, ubuntu também “significa simplesmente compaixão, calor humano, compreensão, respeito, cuidado, partilha, humanitarismo ou, em uma só palavra, amor”, explica Louw, nesta entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.


Por isso, para Louw, os recentes episódios políticos da sociedade sul-africana, como a superação do apartheid, foi primordialmente “o resultado do surgimento de um ethos de solidariedade, um compromisso com a coexistência pacífica entre sul-africanos comuns a despeito de suas diferenças”.

Louw indica ainda que “o ubuntu é resilientemente religioso”, já que “não só os vivos devem compartilhar e cuidar uns dos outros, mas os vivos e os mortos dependem uns dos outros”. Nesse sentido, afirma, “o conceito africano de comunidade inclui toda a humanidade. Todos nós (isto é, os vivos e os mortos-vivos ou ancestrais) somos família”. E não só: por ter nascido em um pensamento holístico como o africano, o ethos do ubuntu afirma que uma pessoa não só é uma pessoa por meio de outras pessoas, mas também é uma pessoa por meio de todos os seres do universo, incluindo a natureza e os seres não humanos, explica Louw.
Dirk J. Louw é psicólogo clínico da província de Limpopo e ex-professor de filosofia da University of the North, na África do Sul. Estudou na Universidade de Utrecht, na Holanda, na Universidade da África do Sul e na Stellenbosch University, também na África do Sul. É pesquisador da pesquisador da Universidade de Joanesburgo e do Centro de Ética Aplicada da Stellenbosch University e membro do Institute of Transpersonal Psychology. É membro fundador da South African Philosopher Consultants Association, ex-membro do comitê executivo da Sociedade Filosófica da África do Sul e ex-editor do South African Journal of Philosophy. Entre suas publicações, destacamos seu livro Ubuntu and the Challenges of Multiculturalism in Post-apartheid South Africa (Center for Southern Africa, Utrecht University, 2001) e seu artigo Ubuntu: An African Assessment of the Religious Other.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que significa ubuntu? Quais são as noções centrais para essa filosofia e estilo de vida?

Dirk Louw – 
O sentido de ubuntu está resumido no tradicional aforismo africano “umuntu ngumuntu ngabantu” (na versão zulu desse aforismo), que significa: “Uma pessoa é uma pessoa por meio de outras pessoas”, ou “eu sou porque nós somos”. Ser humano significa ser por meio de outros. Qualquer outra forma de ser seria “des-umana” no duplo sentido da palavra, isto é, “não humano” e “desrespeitoso ou até cruel para com os outros”. Essa é, grosso modo, a forma como a ética ubuntu africana descreve e também prescreve o ser humano.
 Em um sentido estritamente tradicional ou, se se preferir, religioso, ubuntu significa que só nos tornamos uma pessoa ao ser introduzidos ou iniciados em uma tribo ou em um clã específicos. Nesse sentido, “tornar-se uma pessoa por meio de outras pessoas” implica em passar por vários estágios, cerimônias e rituais de iniciação prescritos pela comunidade.
 Entretanto, em um sentido comum ou, se se preferir, secular, ubuntu significa simplesmente compaixão, calor humano, compreensão, respeito, cuidado, partilha, humanitarismo ou, em uma só palavra, amor.

IHU On-Line – Como o ubuntu se relaciona com a história e a cultura africanas? Quais são as suas fontes?

Dirk Louw – 
As questões referentes às fontes do ubuntu e à sua relação com a história e a cultura africanas são controversas. Alguns pesquisadores sustentam que o ubuntu tem sido comunicado por meio de histórias de geração a geração desde tempos imemoriais, e que as articulações africanas dos valores do cuidado e da partilha são muito mais antigas do que suas articulações ocidentais – ou até que as articulações ocidentais têm suas raízes nas articulações africanas. Outros pesquisadores parecem sugerir que o ubuntu não passa de uma cortina de fumaça autofabricada para as atrocidades cometidas por africanos no passado e no presente.
 Então, o ubuntu existe? Os africanos de fato seguem o ubuntu? Essa pergunta merece mais atenção do que é possível aqui. Entretanto, ao menos quatro observações parecem apropriadas. Em primeiro lugar, afirmar que o ubuntu existe não significa necessariamente sustentar que a compaixão que ele expressa prevalece ou prevaleceu sempre e em toda parte nas sociedades africanas. É claro que não prevaleceu nem prevalece. Contudo, depois que se conseguir olhar para além das manchetes populares, podem-se detectar os mais anônimos atos de compaixão entre os africanos. Para citar apenas um exemplo: a transição relativamente não violenta da sociedade sul-africana, que passou de um Estado totalitário para uma democracia multipartidária, não foi meramente o resultado das negociações transigentes de políticos. Ela foi também – e talvez primordialmente – o resultado do surgimento de um ethos de solidariedade, um compromisso com a coexistência pacífica entre sul-africanos comuns a despeito de suas diferenças.
 Em segundo lugar, embora talvez se duvide da existência do ubuntu como uma realidade plenamente vivida, dificilmente se pode negar a sua existência como um conceito, narrativa ou mito proeminente na África e certamente no sul da África. Chamar a ética ubuntu de “mito” não significa negar sua “verdade factual” – embora o termo seja muitas vezes usado neste sentido. A palavra “mito”, da forma como é usada aqui, descreve a ética ubuntu como uma história duradoura que – independentemente de sua “verdade factual” – inspira moralmente e revela o sentido (isto é, a relevância ou importância) da vida para as pessoas que participam dela, ou seja, que contribuem para contá-la e recontá-la.

Em terceiro lugar (ou formulando as duas primeiras observações de forma diferente), antes de começar a negar ou afirmar a existência de algo, seria de bom alvitre se envolver em análises conceituais relevantes. O que exatamente está sendo negado ou reafirmado? Neste caso: o que exatamente se quer dizer com “ubuntu” ou “existe”? Finalmente, mesmo afirmando a existência do ubuntu, deve-se cuidar para não exagerar a influência normativa da ética africana tradicional nas comunidades africanas.

IHU On-Line – Qual a relação entre o ubuntu e a religião? Como a ética ubuntu pode ajudar a melhor desenvolver um verdadeiro diálogo inter-religioso?

Dirk Louw –
 O ubuntu é resilientemente religioso. Para um ocidental, a máxima “Uma pessoa é uma pessoa por meio de outras pessoas” não tem conotações religiosas óbvias. Ele provavelmente a interpretará apenas como um apelo geral para tratar as outras pessoas com respeito e decência.

Na tradição africana, entretanto, essa máxima tem um sentido profundamente religioso. A pessoa que devemos nos tornar “por meio de outras pessoas” é, em última análise, um ancestral. E, da mesma forma, essas “outras pessoas” incluem os ancestrais. Os ancestrais são a família extensa. Morrer é um último voltar para casa. Por conseguinte, não só os vivos devem compartilhar e cuidar uns dos outros, mas os vivos e os mortos dependem uns dos outros.

A ética ubuntu ajuda a melhor desenvolver um diálogo inter-religioso verdadeiro condensando precondições vitais para esse diálogo. Essas precondições incluem um respeito pela religiosidade, individualidade, particularidade e historicidade ou natureza processual dos outros, assim como a valorização do consenso ou do acordo.

IHU On-Line – O que o ethos do ubuntu tem a ensinar às outras tradições, culturas e religiões não africanas? Que aspectos o ubuntu pode ajudar a aprimorar na ética ocidental?

Dirk Louw –
 Permita-me reformular ligeiramente essas perguntas: o ethos do ubuntu é unicamente africano? O ubuntu só faz parte da herança cultural africana? Seria etnocêntrico e absurdo sugerir que a ética ubuntu de cuidado e partilha é unicamente africana. Afinal de contas, os valores que o ubuntu procura promover também podem ser identificados em várias filosofias da Eurásia. Isso não significa negar a intensidade com que esses valores são expressos pelos africanos. Mas o mero fato de serem expressos intensamente por africanos não torna, por si só, esses valores exclusivamente africanos.

Entretanto, embora a compaixão, o calor humano, a compreensão, o cuidado, a partilha, o humanitarismo etc. sejam sublinhados por todas as principais cosmovisões, ideologias e religiões do mundo, eu gostaria, no entanto, de sugerir que o ubuntu atua como uma justificação distintivamente africana dessas formas de se relacionar com os outros. O conceito de ubuntu dá um sentido distintivamente africano e uma razão ou motivação distintivamente africanas para uma atitude amorosa para com o outro.

O que, então, o ethos do ubuntu tem a “ensinar” às tradições, culturas e religiões não africanas (incluindo as ocidentais)? Ele pode servir como um importante incentivo para reavaliar o “ser por meio de outros” em tradições, culturas e religiões não africanas, para reenfatizar os imperativos do cuidado e da partilha com os outros.

IHU On-Line – Qual a importância da comunidade e da família para a ética ubuntu?

Dirk Louw – 
É lógico que a comunidade/família é muito importante para a ética ubuntu. Afinal, o ubuntu significa “ser por meio de outros”. Mas o que exatamente “a comunidade/família” significa nesse contexto? Espera-se que uma ética da compaixão seja inclusiva, e não exclusiva, isto é, que ela inclua, e não exclua; que abra espaço, e não aliene. Mas quão inclusiva é a comunidade que o ubuntu descreve e prescreve? Às vezes, é difícil evitar a impressão de que o ubuntu não pretende ser exatamente uma “lei universal do amor”. Por exemplo: o sentido dos ritos de iniciação em sociedades africanas tradicionais parece implicar que o ubuntu funcionava (e ainda funciona) como uma ética vinculativa exclusivamente dentro dos limites de um clã específico. Essa compreensão exclusiva da comunidade que é o ubuntu combina com o óbvio potencial do ubuntu de desencadear conflitos étnicos. Ela (ou uma versão dela) também parece constituir a base da forma pela qual alguns negros sul-africanos tendem a ver o ubuntu como “a” diferença definitiva entre eles próprios como africanos e os não africanos (incluindo as chamadas “pessoas de cor”, asiáticos e brancos).

Ser membro da comunidade que é o ubuntu não parece, portanto, ser fácil para os não africanos ou, ao menos, para os africanos não negros. Os defensores do ubuntu parecem estar divididos no tocante a isso. Em termos gerais, todos eles enfatizam sua inclusividade. Entretanto, alguns proponentes do ubuntu dão a impressão de que, embora a comunidade que é o ubuntu transcenda os limites de um clã específico, ela só inclui aqueles cujas origens estão na África. Outros salientam que a comunidade que é o ubuntu também inclui “estranhos”, isto é, pessoas que não estão relacionadas por sangue, parentesco ou casamento. Por fim, para alguns autores, o conceito africano de comunidade, em seu mais pleno sentido, inclui toda a humanidade. Todos nós (isto é, os vivos e os mortos-vivos ou ancestrais) somos família – ninguém está excluído.

IHU On-Line – O senhor afirma que “a ênfase do ubuntu sobre o respeito pela particularidade é vital para a sobrevivência da África do Sul pós-apartheid”. Nesse sentido, que aspectos o ubuntu ajudou a forjar na sociedade e política sul-africanas? O que poderia ser ainda aprimorado?

Dirk Louw – 
O desafio da sociedade e da política da África do Sul é o desafio de afirmar a unidade ao mesmo tempo em que valoriza a diversidade, isto é, de forjar a unidade na diversidade e, igualmente, a diversidade na unidade. O ubuntu ajudou a forjar a unidade na diversidade por meio de sua ênfase na comunidade, expressada por palavras como simunye (“nós somos um”, isto é, “unidade é força”) e slogans como “um dano causado a um é um dano causado a todos”.
 Ele também forjou a diversidade na unidade através de reavaliações criativas desse conceito, que acentuam a importância da alteridade no ethos do ubuntu. Essas reavaliações operam com conceitos de consenso ou de solidariedade que condizem com um regime democrático em comunidades políticas africanas. Talvez seja necessário trabalhar mais nesse sentido. Uma compreensão emancipatória da democracia ubuntu (democracia comunitária) poderá, por exemplo, exigir que os indivíduos recebam tanta oportunidade quanto possível para fazer mudanças e decidir por si mesmos como são governados.
IHU On-Line – O ubuntu também está relacionado ao respeito pela particularidade do outro e ao respeito pela individualidade. Assim, como o ubuntu vê a noção de “outro”? Em um mundo globalizado, o que o ubuntu pode oferecer para que se ultrapassem as diferenças culturais, políticas, econômicas e religiosas entre os povos?

Dirk Louw – 
É importante que ninguém seja um estranho em termos do suposto alcance da comunidade que é o ubuntu, dado o potencial do ubuntu para degenerar em um comunitarismo totalitário – isto é, dada a sua tendência de excluir, e não de incluir, como se esperaria de uma ética do cuidado e da partilha. Como uma ética excludente, um ubuntu desvirtuado representa a fortificação e a preservação de uma identidade dada por meio da limitação e da segregação. Nos termos dessa ética, o slogan simunye (“nós somos um”) sinaliza, ironicamente, a pureza de classe, cultura ou etnia; racismo e xenofobia – um fenômeno com o qual os (sul) africanos estão por demais familiarizados.
 O verdadeiro ubuntu se opõe a tendências totalitárias levando a pluralidade a sério. Ao mesmo tempo em que constitui o “ser pessoa” por meio de outras pessoas, ele valoriza o fato de que “outras pessoas” sejam assim chamadas, justamente porque, em última análise, nunca podemos “ficar inteiramente na pele delas” ou “enxergar completamente o mundo através de seus olhos”. Portanto, quando o “ubuntuísta” lê “solidariedade” e “consenso”, ele também lê “alteridade”, “autonomia” e “cooperação” (observe: não “cooptação”).

IHU On-Line – Como o ethos do ubuntu compreende a nossa relação com a natureza e a proteção das vidas não humanas?

Dirk Louw – 
O pensamento africano é holístico. Como tal, ele reconhece a íntima interconectividade e, mais precisamente, a interdependência de tudo. De acordo com o ethos do ubuntu, uma pessoa não só é uma pessoa por meio de outras pessoas (isto é, da comunidade em sentido abrangente: os demais seres humanos assim como os ancestrais), mas uma pessoa é uma pessoa por meio de todos os seres do universo, incluindo a natureza e os seres não humanos. Cuidar “do outro” (e, com isso, de si mesmo), portanto, também implica o cuidado para com a natureza (o meio ambiente) e os seres não humanos.

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