“Toda mulher dá a sua vida pelo
que ela acredita”. A frase é atribuída à Joana D’Arc, a famosa heroína francesa
que viveu no século XIV, mas pode muito bem ser usada para resumir a história
de uma brasileira que tem o mesmo nome mais de 600 anos depois.
Joana D’Arc Félix de Souza, 53
anos, superou a falta de estrutura, a fome e o preconceito para se tornar
cientista, PhD em química pela renomada Universidade de Harvard, dos
Estados Unidos. Hoje, ela soma 56 prêmios na carreira, com destaque para a
eleição de ‘Pesquisadora do Ano’ no Kurt Politizer de Tecnologia de
2014, concedido pela Associação Brasileira da Indústria Química (Abquim).
Desde 2008, ela também é
professora da Escola Técnica Estadual (ETEC) Prof. Carmelino Corrêa Júnior,
mais conhecida como Escola Agrícola de Franca, cidade do interior de São Paulo,
e molda novas gerações a seguirem sua trajetória inspiradora.
“Eu era a caçula de três irmãos, tinha certa
diferença de idade, então minha mãe me levava com ela para o trabalho. Ela
aproveitou que tinham jornais na casa da patroa e me ensinou a ler, para eu
ficar mais quieta. Tinha quatro anos e ficava o dia todo lendo”, conta ela ao
O mesmo curtume que deu ao pai
casa (a família vivia numa pequena moradia oferecida pelo patrão) e trabalho
por 40 anos acabou influenciando a jovem Joana na hora de escolher uma
faculdade. Contando com a ajuda de uma conhecida, ela decidiu prestar
vestibular em química, pois estava acostumada a ver profissionais da área
atuando no trabalho com o couro.
“Uma professora tinha um filho
que fez cursinho e pedi o material para ela. Meu pai e minha mãe não tinham
estudo, mas me incentivavam. Eles tinham consciência de que eu só cresceria
através de estudos. Passei a estudar noite e dia até entrar na Unicamp
(Universidade Estadual de Campinas)”, relembra a pesquisadora, que não se
deixou abalar pelo preconceito que sofreu até o tão sonhado diploma.
“As cidades de interior têm
aquela coisa de sobrenome: se você tem, pode ser alguém, se não tem, não pode.
Sempre enfrentei preconceito. Na minha segunda escola, mesmo sendo estadual,
tinha aquela coisa de classe para os ricos, classe para os pobres, com
tratamentos diferentes. Em Campinas, fora da universidade, também senti um
pouco. Infelizmente, o Brasil ainda é um país racista. Pode estar um pouco mais
escondido, mas isso ainda existe. Mas não usei isso como obstáculo, e sim como
uma arma para subir na vida”.
A
vida acadêmica
Estimulada por professores a
seguir na vida acadêmica e encantada pelo campo de pesquisa, Joana ainda
concluiria mestrado e doutorado em Campinas – este último com apenas 24 anos.
Um dos artigos da cientista saiu no Journal of American Chemical Society, e
logo ela recebeu o convite para seguir os estudos nos Estados Unidos.
O pós-doutorado de Joana foi
concluído na Universidade de Harvard. Um professor solicitou que ela aplicasse
em seu trabalho um problema brasileiro, e ela optou pelos resíduos de curtume
nas fábricas de calçados – desenvolveu a partir destas substâncias poluentes um
fertilizante organomineral. Questionada sobre a condição de trabalho em solo
americano e no seu país natal, a cientista aponta um fator que faz muita
diferença.
“Nos Estados Unidos, eu pedia
um reagente químico e em duas ou três horas conseguia. No Brasil, até eu
arrumar dinheiro, fazer solicitação… Aqui tem mais burocracia. A questão de
financiamento para pesquisa é bem mais rápida nos Estados Unidos”.
A brasileira ficaria mais tempo
nos Estados Unidos não fosse uma tragédia familiar: sua irmã morreu aos 35
anos, vítima de parada cardíaca, mesma causa do falecimento do pai, apenas um
mês depois. Joana decidiu voltar para o Brasil e cuidar da mãe e de quatro
sobrinhos deixados pela irmã.
Novamente em Franca, a
cientista procurou oportunidades em curtumes da cidade natal até que recebeu o
convite para se tornar professora da ETEC em 2008.
“Quis desenvolver este trabalho
de iniciação científica desde a educação básica, e o resultado foi excelente.
Reduzimos a evasão escolar. A escola é tradicional, tem mais de 50 anos, e é
agrícola. Muitos dos alunos são filhos de fazendeiros da região e não sabiam
por que estudar. Muitos achavam que o ensino técnico era o fim, era o máximo
que iriam conseguir. Mas, com as idas às feiras e congressos, eles começaram a
pensar mais alto, em ir para a universidade, e não estudar só porque o pai
manda”.
Colhendo
os frutos
O trabalho com os resíduos de
curtume é só um dos muitos de destaque que Joana executou nos últimos anos. Em
especial, ela e sua equipe de alunos em Franca conseguiram desenvolver uma pele
similar à humana a partir da derme de porcos. Isso ajudaria no abastecimento de
bancos de pele especializados e de hospitais, além de baratear o custo de
pesquisas, uma vez que a matéria-prima do animal é abundante e de baixo custo.
O projeto, com depoimento da
cientista, está exposto até o mês de outubro no Museu do Amanhã (Rio de
Janeiro). Ele é parte da mostra temporária “Inovanças – Criações à Brasileira”,
que tem o intuito de revelar trabalhos inovadores de cientistas brasileiros,
muitos deles desconhecidos do público.
Joana ainda comandou pesquisa
que resultou na produção de um tecido ósseo feito a partir de materiais também
encontrados na natureza: escamas de peixes e colágeno de curtume. Ela e alunos
da ETEC vão em junho a uma feira em Oswegon, Estados Unidos, apresentar este
projeto, juntamente ao da pele artificial a partir de tecido de porco.
Como resultado deste trabalho,
a professora e cientista já soma 56 prêmios na carreira. Destaque para a
eleição de ‘Pesquisadora do Ano’ no Kurt Politizer de Tecnologia de 2014,
concedido pela Associação Brasileira da Indústria Química (Abquim), além de
projetos vitoriosos em concursos do Conselho Regional de Química do Estado de
São Paulo e da Feira Brasileira de Ciências e Engenharia (Febrace), que
acontece anualmente na USP (Universidade de São Paulo).
Para Joana, porém, a maior
recompensa vem no dia a dia. “Alguns jovens estavam no caminho errado, mas
fazendo a iniciação científica encontraram um rumo. Eles tomam gosto pela
pesquisa. Muitos pais vieram me agradecer, e isso é muito gratificante dentro
da escola básica”, diz ela, antes de concluir: “as armas mais poderosas que
temos para vencer na vida são a educação e o estudo”.
Fontes Uol / jornalfloripa/negrasempoderadas/
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