por Stephanie Ribeiro
Existe uma regra de ouro da linguística que diz: “só existe língua se houver seres humanos que a falem”. Assim começa o livro de Marcos Bagno: “Preconceito Linguístico – o que é, como se faz”. E esse meu texto também, motivado pela constante chamada de atenção de machistas e até de feministas para os meus erros gramaticais.
Eu comecei a escrever textos feministas em 2013. O primeiro deles foi lido por mais de cinco amigos antes de ser enviado para o site que me tinha pedido. Dos meus textos mais populares daquela época – um sobre “Rolezinhos”, para o portal Blogueiras Negras -, li e reli tantas e tantas vezes que praticamente decorei. No começo, eu tinha muito medo de escrever e foi só em 2015 que consegui postar um texto sem mandar para alguém ler antes. O motivo de tanta insegurança?
Medo dos meus erros gramaticais.
Assim como muitas pessoas eu estudei em escolas públicas a vida toda. Ingressei na universidade, nunca fui distante dos livros, como agora também não sou. Porém, me faltou uma base que, meu curso sendo Arquitetura e Urbanismo, não vai completar. E isso não me faz ignorante, muito menos inapta para compartilhar minhas opiniões, mesmo que as vírgulas estejam no lugar errado.
Tudo é no fundo uma questão de sociolinguística: essa é a área que se ocupa das diversas interações entre língua e sociedade. Assim, se define preconceito linguístico como sendo “o conjunto de atitudes, opiniões e valores que usa a língua como fator de discriminação social”. Toda sociedade estabelece valores e códigos para seu funcionamento, seja de maneira implícita ou explícita. A linguagem enquanto necessidade humana faz da língua um contrato social e do idioma o seu código. Toda língua sofre variações que podem acontecer em curtos ou longos períodos de tempo, tais variações são naturais e inerentes a qualquer língua. Entretanto, o conhecimento da norma culta não garante ao indivíduo domínio de todos os aspectos da língua portuguesa justamente pela sua abrangência e complexidade. Todos nós em algum momento estamos sujeitos ao erro, logo fica evidente que ninguém tem imunidade para apontar a imperíca ou deslize de outrem, porque ninguém faz uso de uma língua “castiça”, ou seja, de uma língua “limpa” cujo padrão é irretocável.
Sendo assim, eu já esperava páginas e machistas acreditando que esse é um motivo para desconsiderar o que eu e tantas outras feministas falamos. O problema foi quando comecei a ver feministas usando do argumento: “você nem sabe escrever direito” e com isso tentando descreditar e enfraquecer a dimensão semântica, social e política da minha mensagem.
A cantora MC Carol recentemente recebeu críticas sobre a forma como escreve. Fico pensando se as pessoas não entendem o quão empoderadoras são determinadas coisas que ela diz. Muitos chegam ao ponto de secundarizar a mensagem julgando necessário chamar atenção somente para os erros gramaticais. Carolina de Jesus já existiu e nos mostrou que o intelectual não é o que escreve bem segundo a norma culta, mas é o que escreve fazendo política com as palavras. E linguagem não só faz política como representa PODER.
Por isso, realmente pergunto: qual a necessidade de algumas correções e apontamentos feitos em textos feministas sobre erros gramaticais? Qual a necessidade de machistas ficarem zombando de feministas por isso? Machismo e reprodução de mais uma opressão, nesse caso a linguagem através do preconceito linguístico é usada como mecanismo de exlusão e inferiorização, sobretudo quando se trata de subestimar a capacidade intelectual e cognitiva das mulheres. Por isso, também não entendo as feministas que zombam pessoas por erros gramaticais, mesmo quando são machistas ou reproduzem machismo.
Quando falamos de interseccionar opressões, precisamos lembrar que o Brasil com problemas de raça, classe e gênero, também exclui muitos do acesso a uma boa formação acadêmica.
“Como a educação ainda é privilégio de muito pouca gente em nosso país, uma quantidade gigantesca de brasileiros permanece à margem do domínio da norma culta. Assim, da mesma forma como existem milhões de brasileiros sem terra, sem escola, sem teto, sem trabalho, sem saúde, também existem milhões de brasileiros sem língua. Afinal, se formos acreditar no mito da língua única, existem milhões de pessoas neste país que não têm acesso a essa língua, que é a norma literária, culta, empregada pelos escritores e jornalistas, pelas instituições oficiais, pelos órgãos do poder — são os sem-língua. É claro que eles também falam português, uma variedade de português não-padrão com sua gramática particular, que no entanto não é reconhecida como válida, que é desprestigiada, ridicularizada, alvo de chacota e de escárnio por parte dos falantes do português-padrão ou mesmo daqueles que, não falando o português-padrão, o tomam como referência ideal — por isso podemos chamá-los de sem-língua.” – Marcos Bagno: “Preconceito Linguístico – o que é, como se faz”
O trecho acima defende como os “sem-língua” são basicamente a nação inteira, que usa, fala e escreve o Português “errado”, porém ele basta, porque cumpre a função de comunicar! O nosso Português comunica e que por sinal da voz a todos nós. Entendo que na hora de um debate com um machista, a raiva toma conta. Porém, não defendo a propagação de ideias opressoras e acho completamente desnecessário páginas feministas (ou mesmo comentários) expondo quem não segue a norma culta, como se isso estivesse atrelado à ideia da ignorância por falar algo machista.
Quando essa atitude é tomada não só é preconceito línguistico como estamos automaticamente silenciado inúmeras mulheres, principalmente negras. Meus textos recebem tais críticas e até hoje não sei como agir. Teve uma época que eu passava os posts de facebook para o word, assim haveria uma pré-correção. Depois, comecei a entender que não tem problema nenhum “errar” aqui e ali: o grande problema é acreditar que o que digo perde o sentido e o valor por conter alguma falha normativa. A minha escrita é fruto do que eu sou, é resultado da minha vivência que por sinal acho linda.
“A gramática normativa é decorrência da língua, é subordinada a ela, dependente dela. Como a gramática, porém, passou a ser um instrumento de poder e de controle, surgiu essa concepção de que os falantes e escritores da língua é que precisam da gramática, como se ela fosse uma espécie de fonte mística invisível da qual emana a língua “bonita”, “correta” e “pura”. A língua passou a ser subordinada e dependente da gramática. O que não está na gramática normativa “não é português”. – Marcos Bagno: “Preconceito Linguístico – o que é, como se faz”
É por essa compreensão, que não acredito que seja passível críticar alguém por erros gramaticais mesmo que a pessoa tenha estudado nos colégios mais caros do país. Reproduzir opressões não é nunca um bom caminho para quem luta por uma sociedade digna. Outras vezes, esse tipo de crítica tem como foco negativar alguém com base na carência de instrução formal desqualificando, inibindo e até traumatizando sua capacidade de se comunicar futuramente. O alvo das críticas se sente cada vez mais incapaz e inseguro para se relacionar com qualquer assunto em sua forma escrita.
Consequentemente, os mais atingidos acabam como sempre sendo negros, pobres e mulheres, tríplice marcadora que se sintetiza na figura da mulher negra. Acredito que o feminismo ainda não lida bem com o que mulheres como eu tem a dizer. E que nós ainda representamos a minoria escrevendo para os grandes veículos de comunicação, mesmo em revistas como TPM, ELLE e Cláudia, que cada vez mais assumem a pauta pró-mulher.
Tenho absoluta certeza que o pedido por uma “gramática exemplar” é só mais uma forma de excluir negros e/ou pobres de determinados acessos. Sendo assim, não é à toa que feministas negras ainda hoje têm muitas dificuldades para produzir textos já que se sentem despreparadas. Esse receio não é só gerado pelo medo, já citado, de que evidenciem nossos erros gramaticais e associem isso ao “não ser capaz e ignorante”. Mas também é motivado pela falta de se ver negros ocupando esses espaços como escritores, blogueiros, pesquisadores e intelectuais que não recebem o devido reconhecimento.
Existe muita coisa para ser dita por nós, o que não existe é apoio e difusão do que falamos. Como uma amiga diz: Só nossa “cara preta” no final de um texto, incomoda.
Por trás da reafirmação que português é uma língua díficil, que ninguém sabe escrever corretamente bem, que o certo é falar e escrever assim, como regra única, que quem não sabe a grámatica culta não escreve bem. Vamos aos poucos silenciado muitas pessoas, como Celso Pedro Luft em Língua e Liberdade, diz: “Um ensino gramaticalista abafa justamente os talentos naturais, incute insegurança na linguagem, gera aversão ao estudo do idioma, medo à expressão livre e autêntica de si mesmo.”
E não vejo problemas se nossos textos têm alguns acentos a menos, pontuações demais e palavras que são com C escritas com S, se o contéudo e argumentos forem bons e facilmente entendidos, se cumpriu a tarefa de comunicar deveria ser satisfatório. Não estou negando a gramática normativa, só enfatizando que ela é um ponto na imensidão que a linguagem representa. Segundo a norma culta, existem acentos, cê-cedilhas, dois esses, palavras que começam com h, que na vida real são muitas vezes esquecidos ou trocados, porém a compreensão sobre o que está escrito é feita. O português não é estático, ele é do povo. E o povo brasileiro tem diferentes influências e isso reflete na nossa língua escrita e falada.
A linguagem hoje é expressão de poder e até de classe. Algumas feministas usam, por exemplo, termos em inglês com frequência em seus textos, palavras complexas de pronunciar e escrever, que poderiam ser trocadas por outras mais simples. O feminismo enfatiza que todos somos indivíduos, mas apenas alguns poucos sujeitos gozam de determinados privilégios que os fazem saberem facilmente o que é: “mansplaining” ou “gaslighting”. Em 2014, uma pesquisa apontou que apenas 5% dos brasileiros falam fluentemente inglês.
Acredito que o uso de tais estrangeirismos afasta e impossibilita a troca com mulheres de classes sociais distintas (enfatizo aqui novamente como isso engloba negras, que hoje representam a maioria pobre). O mesmo livro de Marcos Bagno tem um trecho muito interessante, que diz: “a Constituição afirma que todos os indivíduos são iguais perante a lei, mas essa mesma lei é redigida numa língua que só uma parcela pequena de brasileiros consegue entender.” Ou seja, até a lei goza de uma elegibilidade que a torna de difícil compreensão para todos, mesmo que ironicamente, ela seja para todos.
A línguagem tem um poder enorme e pode ser tanto para incluir quanto para excluir. Ou começamos a entender as armadilhas, obstáculos e tramas dessa questão dentro do feminismo ou ainda vamos achar que estamos sendo revolucionárias, quando temos um discurso elitista e excludente.
Termino com um dos meus poemas preferidos:
Dê-me um cigarro / Diz a gramática / Do professor e do aluno / E do mulato sabido / Mas o bom negro e o bom branco / Da Nação Brasileira / Dizem todos os dias / Deixa disso camarada / Me dá um cigarro.
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