O momento do parto é talvez um dos mais emblemáticos da civilização
humana. Ao longo do tempo e nas mais variadas culturas uma vasta gama de
crenças e rituais marcam a chegada de uma nova vida ao mundo. Longe das
explicações científicas, muitas etnias indígenas ainda preservam nos
dias atuais teorias bem particulares sobre a concepção, a gestação e o
nascimento de um ser humano.
A pesquisadora Raquel
Paiva Dias Scopel viveu a experiência de habitar na Terra Indígena
Kwatá-Laranjal, Município de Borba, Amazonas e colher relatos de
indígenas da etnia Munduruku sobre o tema. Sua tese “A
cosmopolítica da gestação, parto e pós-parto: práticas de autoatenção e
processo de medicalização entre os índios Munduruku”, foi apresentada na
Universidade Federal de Santa Catarina para a obtenção do grau de
doutora em Antropologia Social.
Do extenso e profundo estudo destacam-se algumas características principais dessas crenças, resumidas a seguir.
Menstruação - Na cultura Munduruku, o sangue menstrual é um forte atrativo para os
“botos” (seres místicos que provocam doenças, infortúnios e até a
morte). Durante o período da menstruação, as mulheres cumprem um
resguardo que consiste em se banhar dentro de casa (em vez de ir ao rio,
como os outros) e não ir até as fontes de água, como o rio e a cacimba,
para evitar o risco de ter uma “gravidez de bicho” provocada pelo boto
ou por animais, como cobra ou peixe (em que a concepção acontece em
sonhos) e que levam ao aborto e óbito do bebê ou da mãe.
Concepção e gestação - Eles acreditam que o bebê é formado a partir da junção do sêmen do
pai ao sangue menstrual da mãe, por isso, evitam ter relações nesse
período como método contraceptivo. (As mulheres também fazem uso de
remédios caseiros para reduzir o fluxo menstrual e espaçar as gestações)
Durante o período da gestação, enquanto as mulheres engordam e
trabalham normalmente, é comum que alguns homens sofram o “abalo de
criança”, que causa fraqueza, abatimento, prostração, perda de peso,
enjoo e desejo. Isso porque creem que o bebê “puxa” as energias do pai,
que é encorajado por todos a não se deixar entregar, mas faz com que
muitos passem dias deitados nas redes. Além da participação efetiva de ambos os pais na concepção e no
desenvolvimento para que o bebê cresça também é necessária a
participação de Karusakaibu (citado nos mitos como criador dos
Munduruku, dos animais de caça e dos artefatos culturais), aceito também
com os nomes de Deus ou Jesus. Ele é responsável pela formação do corpo
humano, com todos os órgãos internos e externos.
Part0 - Do ponto de vista dos Munduruku, as atividades exercidas pelos pais
ao longo da gestação são responsáveis por facilitar ou dificultar o
trabalho de parto. A mulher é aconselhada a não contar ao marido sobre o
início do trabalho de parto, porque isso pode fazer com que seja mais
doloroso e demorado. Só avisam quando as contrações estão fortes. É um evento íntimo e familiar entre os Munduruku. Apesar de
contar com a opção de parir em unidades hospitalares, do polo base de
saúde Laranjal ou do Sistema Único de Saúde na cidade vizinha, Nova
Olinda do Norte, muitas mulheres que vivem na Terra Indígena
Kwatá-Laranjal preferem ter os filhos em casa, onde podem, inclusive,
ter o apoio de médicos e técnicos de saúde do polo. As que preferem parir em casa contam principalmente com o apoio de
uma mulher que tem o dom de “pegar barriga”. Essas figuras são
geralmente parentes próximas, senhoras que já tiveram filhos, com
experiências em parto, conhecimentos de ervas, chás, banhos e rezas. Por
meio da apalpação da barriga conseguem saber se a gravidez é "de gente"
ou "de bicho". Ela também sabe determinar o sexo da criança pela
observação da consistência e dos movimentos do feto. Ao longo da
gestação essa mulher faz o acompanhamento para verificar se o bebê está
na posição certa para nascer. Se não estiver, pode ser encaminhada para o
hospital. Além de “pegar barriga”, elas sabem como fechar a “mãe do corpo”
depois do parto e colocá-lo no lugar, quando se desloca, por meio de
massagens no ventre. A “mãe de corpo”, segundo o conhecimento munduruku,
fica localizado abaixo do umbigo da mulher. Não é equivalente ao útero
nem à placenta, mas é entendido como “a força da mulher” ou “a saúde da
mulher”, segundo depoimentos colhidos pela pesquisadora. Quando "sai do
lugar" pode causar mal-estar uma série de doenças. Durante a gestação e o parto a gestante é instruída por essa mulher a
tomar banhos de ervas específicas para abreviar o trabalho de parto e
diminuir a dor. A mulher tem liberdade de posições: de joelhos, com as mãos apoiadas
na rede; parcialmente deitada ou sentada no chão, com alguém segurando
pelas costas com os braços ao redor da parturiente; ou “sentada” em um
banquinho (um banco de altura pequena, talvez, uns 10 cm do chão), usado
especialmente para o parto, com alguém apoiando pelas costas,
preferência entre as mulheres Munduruku. Quando o bebê nasce é amparado pela parteira, que também tem a função
de preparar o local de parto, cortar o cordão umbilical e fazer o
asseio da mulher no pós-parto.
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