por NOELIA RAMÍREZ - EL PAÍS
Chega de “loção de
hidratante para pele normal” ou “shampoo para cabelos normais” nas prateleiras
dos supermercados. A gigante britânica Unilever (dona
de marcas como Dove e Axe) anunciou em março que retirará a palavra “normal” de
seus produtos de higiene pessoal depois de consultar 10.000 pessoas de nove
países em um estudo em que 56% dos entrevistados revelaram que se sentiam
excluídos pela indústria da beleza e 6 em cada 10 identificaram efeitos
negativos na palavra “normal”. A multinacional, que com seu compromisso “com a
beleza real” da Dove tocou fundo no léxico popular, continua assim a
capitalizar o movimento da “beleza positiva” em resposta às novas demandas de
consumo.
Por que a palavra
“normal” fere estes consumidores?Por rque é estridente e dissonante em relação
aos tempos que correm, como já aconteceu com os termos “anti-idade” ou
“clareador”. A associação de saúde pública do Reino Unido (RHSP) e a
revista Allure –com a atriz septuagenária Helen Mirren na
capa– pediram a erradicação do primeiro da linguagem publicitária em 2017. O
último, junto com “branco” ou “claro” foi banido por várias marcas no verão
passado, quando a ascensão do movimento #BlackLivesMatter apontou para a indústria da beleza
por denunciar o racismo em suas redes sociais enquanto a
perfeição continuava associada à tez clara. Uma situação especialmente premente
no mercado asiático, onde os cremes de clareamento são algo básico em todo
estojo de beleza e os estereótipos racistas estão normalizados no jargão
popular: na China, existe a pele bai fu mei (“branca-rica-bonita”)
e a hei chou qiong (“negra-feia-pobre”).
Nova biopolítica
A terceira onda do
feminismo dos anos noventa e ensaios como O Mito da Beleza, de
Naomi Wolf, fizeram pedagogia ao converter as mulheres em sujeitos, e não em
objetos escravos do olhar masculino. Superada essa questão (ao menos no
Ocidente), em um panorama de ansiedade, polarização e precarização, a quarta
onda ativista do século XXI apela ao autocuidado e à autoestima como eixos da
resistência política. A geração Z prioriza marcas com as quais comunga em
mensagens positivas, sustentabilidade e inclusão, diz o último relatório da
empresa de previsão de tendências de consumo WSGN. André Spicer, professor da
Universidade de Londres, autor de Business Bullshit (2017),
define esta inter-relação entre ativismo global e cultura do bem-estar pessoal
como “biopolítica”. Para ele, o ativismo sempre esteve intrinsecamente
relacionado à estética: “Os movimentos sociais muitas vezes têm um aspecto
particular ou promovem uma forma particular de cuidar do corpo e regular a
alimentação. Inclusive Gandhi tinha uma rígida disciplina corporal e uma forma
de vestir e viver relacionada à causa da independência indiana e ao processo
não violento: é aí onde o corpo (bio) se encontra com a política”.
A última década foi definida pela filosofia da beleza positiva,
encapsulada no lema “Todos os corpos são belos”. Muitos o criticam como
reducionista e isolacionista. “Enquanto o movimento se centra singularmente na
moda e na venda de produtos, vetos às pessoas trans são aprovados, as
companhias aéreas dificultam a viagem de pessoas de porte avantajado”, escreve
a jornalista Evette Dione em seu festejado ensaio A Fragilidade do
Corpo Positivo. Algo muito distante, sublinha, da política radical de
aceitação da gordura que deu origem à positividade corporal. Para Spicer, o
processo de apropriação é um preço a pagar: “Por um lado, a indústria satisfaz
uma nova necessidade criada por um movimento que mudou os gostos populares e
pode-se inclusive dizer que ajuda que a mensagem chegue aos consumidores
principais. Mas, no processo, diluem-se aspectos do ativismo para alcançar o
consumidor convencional”.
É que a lógica que
rege as empresas é a do capital, não a da justiça social. “A indústria da beleza existe para nos oferecer conforto,
não para nos salvar”, lembra Arabelle Sicardi, jornalista norte-americana de
ascendência taiwanesa especializada na correlação entre beleza e poder
político, tema de seu ensaio The House of Beauty, que será
publicado em breve pela W.W. Norton. “As respostas para problemas estruturais
como o racismo ou a crise ambiental não serão dadas comprando produtos que
prometem doar 5% para uma ONG”, comenta.
“Imagine Audre Lorde
misturada com Gwyneth Paltrow vendendo-se para uma geração Z muito envolvida no
ativismo e que se identifica com o pronome ‘ele’: aí está o futuro
da indústria do cuidado pessoal”, prevê Spicer. Explicar o presente juntando
uma ativista lésbica e negra com a empresária mais famosa da indústria do
bem-estar tem lógica. Na semana posterior à vitória de Donald Trump em 2016, as
buscas por “selfcare” (autocuidado em inglês) atingiram picos
históricos no Google. “Cuidar de mim não é autocomplacência, é autopreservação,
e isso é um ato de guerra política”, escreveu Lorde em A Burst of Light (1988)
sobre por que se refugiar no amor por si mesma diante de um mundo hostil para
mulheres lésbicas, pobres e negras. Tal como aconteceu com a deriva comercial
de “empoderamento” há meia década, o “autocuidado” de Lorde se transformou em
palavra coringa. “Vincula a beleza à autenticidade e ao desenvolvimento pessoal
em vez do narcisismo, e inclusive lhe dá um caráter espiritual em vez de
puramente comercial”, explica Spicer.
Não parecerá negócio
por apelar ao bem-estar, mas daquela resistência política que Lorde defendia
restou um clássico pote de creme e velas detox nos anúncios
segmentados pelo algoritmo do Instagram. “A ideia de que podemos cuidar de nós
mesmas com banhos e máscaras para nos recuperarmos de ataques racistas ou de
abusos policiais é uma fantasia neoliberal. É claro que às vezes é um mecanismo
de sobrevivência, mas um mecanismo de sobrevivência não é uma solução”,
sentencia a jornalista Arabelle Sicardi.
Em 2021, a mulher
urbana ocidental não usa cremes para caçar um marido, como
recomendava a publicidade dos anos cinquenta, mas ela o faz para si mesma.
Repetem-se gestos de avós e mães porque os medos de que o negócio se alimenta
(por que acho que estou gorda, por que tenho rugas, por que não durmo bem)
continuam igualmente ligados ao mito da mulher ideal, apesar do dicionário
inclusivo e das palavras proibidas. Nome diferente, mesmo ritual.
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