Por : Naila Chaves
Desde quando o conceito de interseccionalidade foi difundindo pelos espaços feministas, muita coisa vem sendo (re)pensada. A existência de múltiplas formas de subordinação em um único corpo feminino fez com que repensássemos a ideia de mulher como categoria homogênea. Questões de raça, classe, sexualidade, etnia e corporalidades não hegemônicas foram sendo incorporadas nos debates feministas, que há pouco tempo restringiam-se aos problemas enfrentados pela mulher branca, magra e de classe média. Obviamente, essa visibilidade seria muito profícua e benéfica se houvesse uma real preocupação com a incorporação destas pautas de forma central. Seria. Mas não é assim que tem funcionado.
Meu objetivo com esse texto não é problematizar as discussões que tem sido travadas, muito menos menosprezar a importância deste tipo de debate, ainda que ele seja composto majoritariamente por mulheres privilegiadas. A questão aqui é fazer uma reflexão sobre os usos errôneos de alguns discursos que envolvem representação de algumas pautas, mas que nem de longe chegam a ser uma preocupação central da militância daquele grupo cotidianamente.
Vou aqui citar dois exemplos: pense num grupo composto majoritariamente por mulheres brancas, de classe média, heterossexuais e magras e minoritariamente por algumas mulheres que reúnem em si mais características que as tornam vulneráveis a outras opressões, para além daquelas enfrentadas por pertencerem ao gênero feminino. Esse grupo cotidianamente debate e mantém ações muito importantes, mas voltadas para as pautas daquelas mulheres que estão em peso na composição do grupo. Nada de errado nisto, até chegar o dia 25 de julho – para quem não sabe, Dia da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha – e esse mesmo grupo que jamais ousou debater cotidianamente ou incorporar o debate racial como um projeto central, resolve fazer uma nota pública publicizando seu apoio às mulheres negras, passando a imagem de ser um grupo que se coloca a frente contra a discriminação racial. Ou ainda, no dia nacional contra o genocídio da população negra, esse mesmo grupo se autodenomina combater essa prática.
E novamente aqui: isso realmente seria muito benéfico, se houvesse mesmo a incorporação destas pautas cotidianamente e não apenas como um adereço para o grupo, nos dias representativos destas outras lutas. Quero chamar a atenção para o significado de dizer representar uma luta que nas práticas cotidianas, não se representa. A luta contra a discriminação racial, por exemplo — e estou falando mais nas questões raciais porque sou negra e quero respeitar uma coisa que se chama local de fala — é uma luta séria, que já envolve múltiplos grupos de fato negros e que estão comprometidos com estes projetos por causas que vão muito além de um simples apoio ou uma necessidade de representação supérflua: estão comprometidos por questões de sobrevivência.
Então, se você faz parte de um grupo feminista onde o foco para algumas opressões que vão além do gênero feminino hegemônico só chegam a ser visibilizadas em datas representativas ou após eventos que publicizem estas questões, provavelmente estas outras opressões não estão na agenda cotidiana porque não representam de fato questões de sobrevivência para aquelas mulheres que ali estão, ao menos na composição majoritária do grupo.
Isso não quer dizer que este grupo não deva protagonizar nenhum debate sobre o assunto, mas ao invés de se posicionar publicamente contra essas outras facetas opressoras, por que não fazer destas datas um motivo para (re)pensar fatores internos em relação ao grupo que o faz manter um feminismo hegemônico? Por que não fazer da data de 25 de julho, por exemplo, um evento para que você, feminista branca, reflita sobre os motivos pelos quais o grupo que você participa é composto majoritariamente por outras iguais você?
É muito difícil escancarar estas questões pessoalmente, mas meu texto é um apelo para que o feminismo tenha responsabilidade com as pautas que diz representar. A representação é sim muito importante para alguns grupos, mas a simples representação sem uma real preocupação com os motivos pelos quais aquilo precisa ser representado e incorporado nas pautas cotidianamente e não apenas em datas esporádicas, nada mais é do que praticar um falso feminismo interseccional, em que o que importa é a utilização de mulheres negras, gordas, pobres, lésbicas e bissexuais, trans ou com deficiência como cartas na manga para poder dizer que o seu feminismo não é hegemônico.
(Re)pensemos! Mas, desta vez, (re)pensemos de fato!
Autora Naila Chaves - é mestranda em Direito pelo UnB e formada em Direito pela UNESP. Atualmente estuda raça e gênero como tema de pesquisa e compõe coletivos negros e feministas em Brasília, onde vive.
Fonte: blogueirasfeministas / Foto: George A. Spiva
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