Lina Efigênia
Negrinha, pobre, filha primogênita de mãe cozinheira negra e pai pedreiro branco, morando com eles e o irmão na casa destinada a empregadas, quatro cômodos sobre a garagem dupla, bairro “nobre” da Zona Oeste paulistana.
Amizade com meninas brancas e negras, estas em menor número: duas delas também filhas de empregadas domésticas e residentes no emprego, outras duas que moravam mais abaixo, na parte onde a classe social ia diminuindo, a maioria das casas composta por moradias de trabalhadores em ferrovia. E, entre as crianças, não havia conversas sobre cor, sobre raça... éramos apenas crianças, unidas em razão de idade, inocência, sonhos.. mas à uma visão empírica, pragmática, já separadas por algumas questões relativas a esses mesmos temas não falados e, de classe social.
Ah, eu ficava fula da vida quando me chamavam de “negrinha” e, quando queriam me abusar, puxavam as minhas trancinhas, tão doce, terna, amorosa, caprichosa e cuidadosamente feitas pelas mãos, cansadas mas abençoadas da mãe. – Primeiro a gente não gostava, mas, com o passar dos anos, ficava sabendo que esse tempo do puxa, penteia, estica e trança, essa cumplicidade, esses momentos de troca, a mãe trançando e conversando, contando fatos da família, da vida, exercendo com destreza e técnica inconfundíveis esse ofício do trançar, repreendendo a gente por ter deixado as tranças se desmancharem antes do tempo, tinha sido algo extraordinariamente valioso e que não voltaria jamais.
Quando eu perguntava ao pai o porquê do negrinha e da implicância com as trancinhas, recebia a resposta de que “aqui em casa não tem disso não, porque somos todos iguais perante Deus”... Enquanto ele não via diferença, muitos se especializavam em encontrá-las e evidenciá-las em prejuízo das pessoas “de cor”.
Depois na escola, quando não tinham outro argumento para me atacar, recorriam ao “negrinha” e toca a me provocar puxando minhas trancinhas. Doía as outras crianças desmancharem assim, com despeito, deboche e desprezo, o zelo da minha mãe; não aceitarem nosso traço cultural.
Ah, quanto eu briguei por causa do negrinha e das trancinhas –eu não aceitava passivamente, não, eu reagia! E dá-lhes sopapos, e as empurra, e lhes mostra a língua, e faz careta escancarando a boca com as mãos e levantando os dedos imitando chifrinhos.
Crescendo, as trancinhas foram sendo abandonadas – também, não combinava com os rabos de cavalo das amiguinhas – brancas e negras, eu e as outras “ negrinhas” fazendo de tudo para esticar o cabelo: e passa óleo de não sei o quê, e passa pomada, e recorre ao alisamento por ferro quente; quente mesmo, e a gente nem podia se mexer, senão... txxxxx, o ferro pegava na testa, na orelha, e haja cabelo espichado e com comprimento suficiente para encobrir as queimaduras! E depois a chapinha, as “pastas” de alisamento (eta cheiro horroroso), os “bobs”, o laquê que fazia o danado encrespar... Tudo para parecer o que a gente não era.
E as pessoas dizendo: “ah, mas você não é...preta, você é... moreninha!” com a perversidade travestida de compaixão, de esforço para aceitação, sabe? Como se ser preta fosse algo muito ruim, e que só me aceitavam –ou toleravam-- se eu não concordasse em ser preta!.
O tempo passou e foi um longo período de alijamento da realidade: a maioria absoluta das e dos jovens do bairro, a maioria esmagadora das e dos colegas e amigas e amigos do bairro e da escola, e a quase totalidade das e dos colegas de trabalho na agência de emprego, nas lojas, em vendas e atendimento a clientes e nos escritórios, era branca. Na faculdade o bruta soco no estômago, ao ver a proporção, num curso matutino: a classe com 109 alunos matriculados e, dentre esse total, apenas três negras. Três! Estatisticamente inversamente proporcional= aumento de tempo de escolaridade e diminuição das chances da presença, da ocupação dos espaços.
Em alguns episódios de discriminação em razão do preconceito, na adolescência, juventude e na maturidade eu reagia, mas não com o mesmo vigor como na infância ao defender minhas trancinhas.
A consciência da desigualdade, da negação de oportunidades por não me adequar ao “perfil” desejado pelas empresas foi despertando, mas eu ainda não compreendia bem, já que não usava mais aquelas lindas trancinhas...
Integrei-me a organizações sindicais e a organizações sociais de comunicação, de cultura e de defesa dos direitos humanos. Tenho aprendido muito nesta minha caminhada, cônscia de que falta muito mais ainda a aprender e apreender, ressignificar, abarcar, abraçar, testar, conquistar.
Mas o que eu não consigo aceitar mesmo é o porque de continuarem a puxar as minhas trancinhas, até hoje. Eu reajo, com outro tipo de vigor desenvolvido pela militância e conscientização, reajo sim! Mas tem horas que ainda puxam as minhas trancinhas com tanta força... e eu já não tenho mais as mãos benditas da mãe para refazê-las.
E pensar que muitas vezes a gente reclamava: “ai, tá machucando!”, e outras tantas a gente fugia e se escondia para escapar da sessão de trancinhas...
Que tal eu fechar os olhos e imaginá-la agora aqui, com aquela paciência imensa e aquele desvelo incomensurável, trançando o meu pixaim... ah, juro que desta vez eu não reclamo, vou abrir um baita sorriso e pedir: “Mãe, me faz mais trancinhas, faz?!”
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