O ramo da beleza tem ganhado cada vez mais
visibilidade na internet. Mas qual espaço – e o papel – das blogueiras,
vlogueiras e “youtubers” negras nesse território?
Há um novo nicho de mercado que vem ganhando cada vez mais espaço
online: o ramo de beleza. Muitas garotas sonham em criar um blogue ou um
canal no Youtube e com isso conseguir ganhar dinheiro para se
sustentar, além de receber produtos enviados pelas empresas em troca de
resenhas e propagandas.
No Brasil, esse mercado vem tomando força e hoje já existem muitas jovens blogueiras que se tornaram celebridades na internet.
É importante debater, no entanto, sobre a relevância social desses
novos cargos e profissões e a forma como continuam a reproduzir velhos
preconceitos. Entre tantos estereótipos de gênero, a heteronormatividade
e o estímulo ao consumo, destaco as questões raciais.
Segundo o último Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), mais de 50% das pessoas brasileiras se identificam
como pretas ou pardas; ou seja, mais da metade da população do país se
reconhece como negra. Mas apesar do povo brasileiro ser bastante
miscigenado e não se parecer tanto assim com o ideal de beleza branco
europeu, nota-se que as moças que ganham mais visibilidade e dinheiro
com blogues e redes sociais são, em sua maioria, brancas, loiras, magras
e de classe social média ou alta. Mas por que será?
O ramo da blogagem sobre beleza, primeiramente, acaba ficando restrito
somente às entusiastas com boas condições financeiras, pois para começar
a falar de cosméticos e cabelo é necessário algum investimento inicial
com produtos. Somente assim é possível chamar atenção de alguma loja ou
empresa, que consequentemente pode vir a enviar mercadorias em troca de
divulgação. Não é preciso muita investigação para descobrir que há uma
grande disparidade de renda no Brasil, que se concentra em uma minoria
branca da população.
Em segundo lugar, pouquíssimos produtos são feitos para mulheres que não
se enquadram nesses padrões de beleza. São poucas as marcas de
maquiagem que fabricam cosméticos para atender tons de pele mais
escuros, assim como os produtos para cabelos são predominantemente
voltados para promover os cabelos lisos. Por isso é tão difícil
encontrar uma blogueira ou youtuber negra, de cabelos naturais e,
especialmente, de pele escura.
É possível traçar hipóteses para explicar essa ausência ou falta de
visibilidade das blogueiras e youtubers negras. Afinal, elas existem –
só não fazem tanto sucesso como as loiras. Ao fazermos um resgate
histórico e sociocultural, revela-se que a internet ainda não é
acessível a todos. Mas acima de tudo, resta a hipótese de que o público
simplesmente prefere assistir a quem se encaixa no padrão de beleza
branco e magro.
É essencial pesquisar e estudar mais profundamente essa área; afinal, um
novo campo está se abrindo para as mais diversas vertentes do
conhecimento. Para dar o pontapé inicial, vejamos o que algumas
blogueiras e vlogueiras negras têm a dizer sobre o assunto.
Colaboração e sororidade entre mulheres negras
Rosângela José é uma vlogueira de 35 anos formada em Administração de
Empresas. Sua experiência com o universo da beleza negra feminina na
internet começou em 2009, quando decidiu parar de alisar os cabelos.
Estimulada por amigas com quem já conversara a respeito de maquiagem,
Rosângela começou a gravar vídeos e hoje é tida como referência por
várias garotas no mundo virtual. “Eu acredito que as dicas
compartilhadas no meu canal, o modo como eu lido com meu cabelo
incentiva outras meninas e mulheres negras, até pelo retorno que tenho
de algumas, através de comentários, e-mails e mensagens no Facebook”,
reconhece. E ela está completamente certa; sua representatividade foi
inspiradora o bastante para Beatriz Andrade, designer gráfica de 27
anos, que também é guru de beleza: “Ela é um mega exemplo, transborda
autoestima, ela é demais e sou super fã!”.
Os laços que essas mulheres, a princípio desconhecidas, criam entre si
podem muitas vezes ser invisíveis e distantes, mas também podem culminar
em parcerias que despertam debates políticos e sororidade. Um exemplo
disso é o vídeo que Rosângela gravou com outra youtuber negra, a Fabiana
Lima, do canal “Beleza de Preta”. Em meio a relatos de experiências
pessoais e falas politizadas, as duas blogueiras levantam questões
pertinentes para todas as mulheres negras, independente de qualquer
interesse em cosméticos e produtos capilares.
Assim, fica perfeitamente evidente a relevância social da temática.
Afinal, falar de “beleza” não é, necessariamente, falar de coisas fúteis
e superficiais. Para as blogueiras negras, esse assunto é, em primeiro
lugar, uma chamada de atenção para o ativismo social, especialmente os
movimentos feministas e negros.
Resistência ao racismo
Para as blogueiras negras do ramo, não é nenhuma novidade: são
frequentes os episódios em que o racismo se fez presente em seus canais e
páginas. Passando-se por simples comentários ofensivos, até
perseguições mais severas, quase todas as entrevistadas constataram ter
presenciado racismo e que existe, de fato, preferência pelas moças
brancas e loiras para divulgar e trabalhar com cosméticos.
No entanto, apesar das dificuldades, para algumas blogueiras os
comentários positivos servem de fortalecimento – é o caso de Fernanda
Chaves, mãe e dona de casa de 26 anos. Nanda – como é conhecida na
internet – define-se como “neutra” quando o assunto é política, mas
lamenta que ainda existam coisas como racismo e machismo. Ainda assim,
ela salienta que as mulheres negras, em suas palavras, devem fazer a
parte que lhes cabe e “mostrar que não são piores do que ninguém”.
A youtuber Gill Viana, que trabalha exclusivamente com os assuntos
estéticos na internet, parece concordar com a ideia de que a melhor
resposta para o racismo é fazer um bom trabalho. “Existe racismo em
todos os lados e no YouTube e no mundo da blogosfera não seria
diferente. Acho que vai de cada uma ir lá e buscar seu lugar ao sol,
mostrando com seu trabalho que é tão capaz como outra qualquer”, diz a
blogueira de 28 anos.
Beleza politizada
A paulistana Maraisa Fidelis é uma das blogueiras negras mais conhecidas
no mundo dos cosméticos e, para ela, toda a questão é bem objetiva:
“Você faz o seu trabalho e quem decide a audiência é o público. Se te
assistem, as empresas te olham; se não te assistem, as empresas não te
olham. Simples assim.” Apesar de reconhecer que há poucas mulheres
negras protagonizando o mundo virtual da beleza no Brasil, Maraisa diz
que nunca sofreu discriminação e que se esforça para não envolver
assuntos como racismo em seu blogue, pois prefere deixar seu espaço
voltado somente para os assuntos estéticos.
Não obstante, a fala de Maraisa não pode ser tomada como fechada, uma
vez que ela mesma reconhece a importância de seu trabalho no
fortalecimento da autoestima de garotas negras. E não é à toa: há cerca
de oito meses, a blogueira resolveu assumir seu cabelo natural e hoje
embeleza o Youtube com seu crespo empoderado. Apesar de seu blogue não
ser direcionado apenas às meninas de cabelo cacheado, certamente há
muitas garotas que se sentem representadas e fortalecidas para seguir o
exemplo deixado pela vlogueira.
Já Fernnandah Oliveira, mais conhecida como Criloura, foi uma das
entrevistadas mais politizadas e seguras de sua fala. A assistente
social de 36 anos domina o universo dos cabelos e maquiagens, mas também
participa ativamente de grupos de discussão sobre machismo e racismo.
Suas perspectivas são bem diferentes das de Maraisa: “Penso que a beleza
está dentro de um processo de subjetividade da autoestima e da
aceitação. A partir deste viés é possível apresentar como a cidadania,
enquanto espaço e processo de reconhecimento e garantia de direitos e
deveres, está diretamente ligada neste processo”, afirma. De modo
similar, ela considera necessário expor e mexer nas feridas deixadas
pelo racismo nos canais de beleza. “Para quem duvida, é só contar o
número de blogueiras e vlogueiras negras que estão entre as tops e as
brancas. É disparado ver como há uma diferença em números e qualidade,
sobre a inserção de mulheres e homens negros neste universo de blogs e
vlogs de moda e beleza”.
Ainda sobre os possíveis vínculos entre a política e a beleza, a
vlogueira Michelle Shirai, brasileira de 30 anos que mora no Japão,
declara que nunca sofreu discriminação online, mas entende de forma
muito positiva a sua influência política sobre sua audiência: “Meu
trabalho com os vídeos não é só falar de beleza, mas também de encontrar
a verdadeira identidade, crespa, cacheada, negra de pele escura ou
clara, ter orgulho dos traços e formas. Envolve respeito e a minha união
com muitas outras blogueiras e youtubers negras. Dá força, coragem e
amor próprio de não ligar pro que a sociedade acha ou impõe como
deveríamos nos vestir, ou usar os cabelos”.
Como pode-se perceber, a importância e a influência do trabalho das
blogueiras e youtubers para as mulheres negras é evidente, até mesmo
para aquelas que não são engajadas politicamente contra o racismo e a
misoginia.
A beleza do ativismo
É extremamente importante que todas as mulheres negras que trabalham com
moda, cabelo e cosméticos na internet saibam do potencial que seus
espaços possuem para gerar transformação social. Essas ferramentas são
tão pertinentes que, mesmo sem a intenção das blogueiras, as pessoas que
as acompanham não permanecem as mesmas após assistirem a seus vídeos e
verem suas fotos.
Infelizmente, ainda é impactante ver mulheres negras seguras de si,
ostentando seus cabelos naturais e sem vergonha de seus traços faciais.
Afinal, somos todos condicionados a valorizar e apreciar somente a
beleza branca. Para as crianças negras envolvidas por nossa cultura, é
ainda mais importante que esse trabalho continue a ser feito,
possibilitando para elas uma autoestima muito mais segura e livre do
racismo internalizado.
Nesse aspecto, todas as blogueiras entrevistadas falam sobre isso e, de
certa forma, acabam sendo ativistas por meio do seu trabalho. Beatriz
Andrade consegue definir esse processo quando diz que “a medida que
compreende-se a autoestima, diminui-se o pré-conceito, pois o
autoconhecimento provoca uma liberdade que nem o racismo ou machismo são
suficientes para manter no cativeiro interior”. Sua mensagem, assim
como de todas as outras gurus, é de que cada mulher negra se aceite e se
ame, que supere as violências sofridas desde que veio ao mundo e que, a
partir daí, mostre a que veio. Se isso não é militância, nada mais é.
Fonte : Revista Fórum
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