Ícone da música popular brasileira e inspiração para o movimento negro no país, Elza Soares produziu até o final da vida e deixa um legado de luta
"Elza Soares é herdeira e representante de uma luta
anterior ao feminismo. Ela representa as mulheres negras, todas, que somos
convocadas a lutar para sobreviver", declara a diretora executiva da
Anistia Internacional Brasil, Jurema Werneck, em entrevista a Alma
Preta Jornalismo. Na última quita-feira (21), o país recebeu a notícia do
falecimento de um dos maiores ícones da música e da luta antirracista da
história.
Elza se foi em casa, aos 91 anos de idade, após fazer
fisioterapia, conversar com a família e gravar, dois dias antes, um DVD,
segundo o seu empresário Pedro Loureiro. "Eu sei que a Elza descansa, ela
foi do jeito que ela queria: em casa, tranquila, chegou o momento, chegou o
dia. A gente só lamenta essa perda, mas sei que o seu legado fica conosco",
ressalta a deputada federal Benedita da Silva (PT - RJ).
Uma legião de mulheres negras de várias gerações que
cresceram, evoluíram, consumiram e se emocionaram com Elza Soares, agora
reverenciam e espalham o seu legado. Ela não apenas deixou mais de 30 discos
gravados com os mais variados estilos e ritmos da cultura negra, como o funk, o
jazz, o hip hop e o samba, como foi ponta de lança no enfrentamento à violência
contra a mulher, o racismo, a misoginia e ao conservadorismo.
"Nós conhecemos as tragédias que sua história narrava
repetidas vezes: a fome, a morte, as barreiras incontáveis. Nós mulheres negras
vivemos isso. Sabemos o quanto dói. Uma das poucas entre nós a ocupar a esfera
pública, ela nos representou ao longo das décadas, caindo e levantando e saindo
de cada baque cada vez maior. Superação, mas também aposta no futuro inovador.
Mas ela era, e é uma gênia maior do que nós", afirma Werneck.
Legado para novas vozes negras - A cantora baiana Luedji Luna afirmou
à Alma Preta que Elza inspirou sua carreira desde o início.
Ela salienta que a precursora representou o feminismo negro na prática e
contribuiu "generosamente" com várias artistas negras da nova
geração.
"Elza fez tudo! Demarcou seu lugar de majestade na
música brasileira, gravou discos históricos, foi homenageada em vida, se
posicionou politicamente. Elza é referência não só na música, mas também de
como se deve viver e morrer. Assim como ela, quero até o fim cantar", diz
Luedji.
Luna ressalta que a trajetória de Elza faz refletir sobre a
dificuldade de ser artista negro no Brasil. Ela mostra que enfrentar as
barreiras do ostracismo teve um custo muito alto. Elza não parava de
interpretar, gravar, desfilar em escolas de samba e nem de se reinventar. Aos
85 anos, por exemplo, Elza Soares, que já somava dezenas de premiações, recebeu
um Grammy Latino pelo álbum "A Mulher do Fim do Mundo". A
sambista brasiliense Dhi Ribeiro conta que Elza foi uma mulher que lutou por
sua liberdade e independência. Segundo a artista, ela lutou para manter sua individualidade
como cantora e sua autenticidade.
"Ela não se dobrou aos apelos da massificação. Não se
deixou enquadrar. Posicionou-se todas as vezes que precisamos de representação.
Ela foi nossa voz em uma sociedade que sempre tentou silenciar a mulher negra",
afirma a cantora.
História de luta - Com uma história de vida de superação e ausências,
Elza enfrentou a morte dos filhos, a fome e a violência doméstica. Por volta
dos 20 anos, fez seu primeiro teste como cantora e, após ficar viuva, decidiu
tentar a sorte em um show para calouros apresentado por Ary Barroso.
"De que planeta você veio, minha filha?", perguntou
o apresentador tentando ridicularizar a cantora por sua aparência humilde.
"Eu vim do planeta fome", disse Elza, que recebeu nota máxima do júri,
abrindo espaço para a sua carreira de uma forma genuína.
Seu início no samba foi estrondoso, mas sempre lutando contra
todas as formas de opressões que uma mulher preta podia suportar. Devido a fase
de menos sucesso nos anos 80, ela pensou até em desistir da carreira, mas
resolveu procurar Caetano Veloso, com quem gravou o samba-rap
'Língua'. Essa participação mostrou a bossa negra de Elza Soares a uma
nova geração e abriu caminho para que a cantora conhecesse outras influências
além do samba. No ano 2000, foi eleita pela BBC de Londres a 'Voz do Milênio'.
Ellen Oléria, cantora brasiliense declarou que Elza ocupa o
seu imaginário como os próprios "dreads": "Ela simboliza raízes,
cordas e antenas", disse à Alma Preta Jornalismo. Oléria contou que
está grata pela oportunidade de ter sido contemporânea de Elza e trata a sua
passagem como uma grande festa da memória do povo preto. "O luto é o
sentimento de quando uma vida valeu a pena", diz.
A deputada federal Áurea Carolina (Psol-MG) reitera que a
cantora moveu e seguirá movendo as estruturas que fazem as mulheres negras
acreditarem que não somos merecedoras de todo o poder e sucesso.
"Com carreira já consolidada, levantou-se contra o
machismo e o racismo, fez ecoar com seu vozeirão rouco e magnético as
reivindicações de tantas nós, enamorou-se do rap e seguiu se reiventando, nos
reiventando, anunciando que jamais aceitaremos sermos a carne mais barata do
mercado", afirma a parlamentar.
Músicos, pensadores, jornalistas, artistas de todas as
vertentes, pesquisadores e diversas gerações de pessoas pretas celebram a
grandiosidade de Elza Soares. Seu corpo foi sepultado, nesta sexta-feira (21)
no Cemitério Jardim da Saudade, em Sulacap, na Zona Oeste do Rio.
Nova série do YouTube Originals, apresentada por Agnes
Nunes, celebra Elza Soares e outras grandes cantoras negras
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