segunda-feira, 1 de novembro de 2021

Uma Beata brasileira contra o feminicídio

 Uma menina morta aos 13 anos na região do Cariri, no Ceará, é adorada como santa e aguarda cerimônia de beatificação no Vaticano. Romarias reúnem outras vítimas de violência, que pedem milagres ante o gargalo nas políticas de proteção



Benigna Cardoso começou a tarde do dia 24 de outubro de 1941 como sempre fazia. Órfã de um casal de agricultores, a menina de 13 anos adotada por uma senhora na cidade cearense de Santana do Cariri pegou um pote de barro e caminhou em direção ao poço perto de casa, no Sítio Oiti, para garantir água à família. Andava mais calada naqueles dias, provavelmente com medo do adolescente que a cortejava e não se conformava com suas negativas. A insistência de Raul fora relatada à avó e ao padre da igreja local, mas não ocorreu a ninguém buscar proteção contra um jovem de 17 anos que parecia “normal”. Ela foi orientada apenas a mudar de escola, para não ter que encontrar o colega de classe. Não foi o bastante. No fim daquela tarde de outubro, o rapaz tentou estuprá-la enquanto a menina buscava água e a matou. Oitenta anos depois, Benigna avança no longo trajeto rumo à santificação pelo martírio que sofreu. Todos os anos, romarias são realizadas para homenageá-la e atraem outras vítimas de violência machista, que pedem milagres diante do gargalo que persiste nas políticas públicas de proteção do país. Naquele 24 de outubro, Benigna resistiu a Raul o quanto pôde: ao assédio e aos golpes de facão que o colega de classe desferiu com raiva em suas mãos, pescoço e face até deixá-la praticamente decepada. Mas a menina religiosa, que não deixava os colegas arrancarem folhas das árvores e emprestava as próprias mãos para livrar os amigos da palmatória na escola, acabou assassinada. De uma forma tão brutal e chocante que a comunidade ressignificou aquele feminicídio e passou a vê-la como santa, pelo martírio que sofreu. Raul confessou ter praticado o crime por causa da rejeição e cumpriu sua pena na justiça. “Mulheres se apegam à santa em momentos semelhantes, solicitando a ela a intercessão, para que possam sobreviver a atos violentos. E dizem ter alcançado graças neste sentido. A fé e a religiosidade também estão presentes neste contexto na região. Benigna é proclamada ante essas circunstâncias”, conta Grayce Alencar Albuquerque, coordenadora do Observatório da Violência e dos Direitos Humanos do Cariri, da Universidade Regional do Cariri. A Menina Benigna, como ficou popularmente conhecida, está agora no processo final do Vaticano para tornar-se beata, o último passo antes de iniciar o processo de canonização que um dia pode torná-la oficialmente santa. Se, por muitas décadas, ela foi vista como símbolo da castidade por resistir ao estupro, agora é também um ícone da luta contra um crime tipificado somente muitos anos depois de sua morte. O feminicídio é um problema grave até hoje no Estado onde viveu. Entre janeiro e setembro deste ano, 13.690 mulheres denunciaram violência machista no Ceará. E 22 tiveram seus assassinatos registrados como feminicídio, conforme as estatísticas oficiais da Secretaria de Segurança Pública, historicamente subnotificadas. Ao longo do ano passado, 320 mulheres foram assassinadas no Estado. O dia da morte de Benigna passou a ser considerado, por lei, o dia estadual da luta contra o feminicídio.

Fonte: ELPAIS 

Nenhum comentário:

MAIS LIDAS