domingo, 17 de maio de 2015

Mulheres em coabitação respondem por metade da fecundidade brasileira, aponta estudo

Estudo do Nepo mostra que a decisão de ter filhos
  independe das condições proporcionadas pelo 
casamento

As mulheres que vivem em união consensual respondem por 46,6% da fecundidade no Brasil, o que demonstra que a decisão de ter filhos não depende necessariamente das condições proporcionadas pelo casamento. As mulheres casadas, por sua vez, têm contribuído com 38,7% da fecundidade, enquanto que as que vivem sós, com outros 14,7%.  Os dados fazem parte de estudo elaborado pela cientista social e demógrafa Joice Melo Vieira, professora do Departamento de Demografia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) e pesquisadora do Núcleo de Estudos de População “Elza Berquó” (Nepo) da Unicamp.
De acordo com o trabalho, a fecundidade brasileira, que já estava abaixo do nível de reposição populacional em 2006, depende cada vez mais das mulheres em situação de coabitação. Para uma população conservar o seu tamanho em longo prazo, explica Joice, é esperada uma fecundidade de 2,1 filhos por mulher. Porém, o indicador tem se mantido abaixo deste patamar. Alguns fatores que ajudam a explicar tal quadro, conforme a autora da pesquisa, são a maior independência feminina e a proteção que a legislação brasileira confere aos cônjuges dentro da união consensual.
De acordo com a lei, estes têm direitos semelhantes aos daqueles que vivem em união formal, o mesmo se aplicando aos seus filhos. “Nesse sentido, as mulheres se sentem confortáveis tendo filho dentro de uma união que não é formalizada”, pontua Joice. Apesar de ter amparo legal, o sistema de coabitação pode trazer implicações sociais negativas, segundo a pesquisadora do Nepo. Constrangimentos podem ocorrer, por exemplo, no momento do registro da criança.
A legislação permite que o homem registre o filho no cartório sem a presença da mãe. Entretanto, o mesmo não ocorre em relação à mulher, que está impedida de registrar a criança em nome do homem, sem a presença ou sem uma declaração deste. Embora a maioria possa pensar que o homem não criará empecilhos para reconhecer a paternidade, dado que vive em união consensual com a mulher, o desfecho desse tipo de situação não é tão simples assim, como esclarece Joice. Segundo ela, existe uma variabilidade dos arranjos entre os casais. Se no momento do nascimento dos filhos a relação estiver passando por alguma crise, isso pode interferir no registro das crianças.
Atualmente, a certidão de casamento garante a inserção do nome do marido da mãe, o pai presumido, na certidão de nascimento da criança. “Uma mulher que apresente a certidão de casamento no cartório normalmente consegue inserir o nome do marido na certidão do filho. Ou seja, dentro do casamento há uma inversão de papeis. Ao invés da mulher demandar o reconhecimento de paternidade, é o homem quem deverá ingressar na Justiça para eventualmente retirar o seu nome do registro de nascimento. Isso impacta o balanço de forças na relação”, considera.
Outra “desvantagem” que pode advir da união consensual, continua Joice, acontece no momento em que o cônjuge vai requisitar direitos previdenciários. Neste caso, a pessoa precisa apresentar três provas de que a união consensual existia, como conta bancária conjunta, aluguel no nome dos dois cônjuges e o registro de um filho em nome de ambos. “Dependendo da situação, é muito difícil fazer essa comprovação. Pessoas que não têm conta conjunta em banco, que moram em áreas de ocupação e não têm diversas dimensões da vida documentadas, geralmente não conseguem apresentar essas provas. Em outras palavras, não existe atualmente preconceito em relação à união consensual, mas dependendo do arranjo isso pode trazer dificuldades para as pessoas”, pormenoriza.
Considerando a população que vive em união no Brasil, 63,6% das pessoas eram casadas e 36,4% unidas consensualmente, de acordo com o censo de 2010. Porém, entre as mulheres abaixo dos 30 anos, faixa etária em que ainda se costuma concentrar a maior parte da reprodução no Brasil, mais da metade vivia em união consensual. Isto fornece evidências de que o casamento civil tem passado por um processo de desmistificação para uma parcela significativa da população, destaca a pesquisadora.
Tal postura decorre, entre outros fatores, dos custos do casamento e da dificuldade de acesso aos cartórios por parte de alguns segmentos da população, notadamente os pertencentes às chamadas classes C, D e E. “Por mais que o governo federal nos anos 2000 tenha democratizado o acesso da população aos cartórios, inclusive com a isenção de taxas, nem todos têm conhecimento desse benefício. Além disso, as pessoas se sentem constrangidas ao buscar esse direito, pois são obrigadas a providenciar uma declaração de pobreza. Se o serviço prestado pelos cartórios fosse totalmente público, é possível que o cenário fosse outro”, infere.
Mais um ponto a ser considerado, acrescenta Joice, é o fato de o juiz de paz não ser um magistrado. Em outras palavras, ele não tem uma formação especial para exercer a função. “O que a gente observa é de fato uma desmistificação do casamento civil. Por outro lado, em relação ao casamento religioso, nós temos constatado novas formas de vivenciar a religiosidade, que não passam necessariamente pelas instituições. Alguns estudos sobre valores indicam que o brasileiro é um dos povos que mais acredita em Deus. Todavia, o nível de comprometimento das pessoas com a religião é muito particular. Para muitas, não há contradição em não oficializar a união no civil ou no religioso, mesmo praticando determinada religião”, esclarece.
Joice informa que os pesquisadores envolvidos com o tema têm olhado com atenção a questão dos casamentos coletivos, que podem ser considerados uma política pública voltada à oficialização das uniões. O que tem sido possível captar até o momento, de acordo com ela, é que as pessoas têm interesse em casar, mas não de qualquer forma. “Muitos casais sonham com uma cerimônia exclusiva, com todo o ritual de praxe. Desse modo, esperam pelo momento mais adequado para oficializar a união, momento este que muitas vezes não chega”.

DISCURSO E PRÁTICA

O estudo realizado por Joice emerge num momento muito oportuno, no qual a sociedade brasileira assiste a debates em torno do tema família. Um dos focos das discussões é a Câmara dos Deputados, onde tramita o projeto do Estatuto da Família. No bojo do processo, estão questões como o conceito de família, as uniões homoafetivas e as políticas públicas destinadas a garantir condições mínimas para a “sobrevivência dessa instituição”.
De acordo com a pesquisadora do Nepo, a Constituição de 1988 reconheceu as uniões consensuais, mas determinou que houvesse um esforço por parte das autoridades para ampliar as formalizações destas. Joice entende que na atualidade o discurso jurídico oficial tem buscado não tecer julgamentos morais sobre a forma como as famílias são constituídas. “Nós não temos visto por parte da magistratura, por exemplo, um discurso de valorização do casamento estrito senso. O que acontece é uma fala voltada à ampliação do acesso das pessoas à Justiça. É, portanto, mais um discurso de cidadania que de valoração de um tipo de união frente a outro”.
Nos Estados Unidos, conforme a autora do estudo, a abordagem já foi bem diferente. Especialmente na administração Ronald Reagan o país optou por valorizar o casamento, deixando o discurso de defesa da cidadania em segundo plano. Voltando à realidade brasileira, Joice assinala que as mulheres apresentam padrões de fecundidade diferentes, variando conforme as suas condições socioeconômicas. Em geral, as mulheres pertencentes às classes A e B selam uniões em idades mais avançadas, quando já alcançaram alguma estabilidade econômica.
Essas mulheres também têm filhos um pouco mais tarde, diferentemente do que acontece com as inseridas nas classes C, D e E. “Dizendo de maneira simplificada, no Brasil quanto mais cedo as pessoas têm filhos, maior a chance de estarem em união consensual e não em casamento”. Ainda em relação às políticas públicas direcionadas à família, Joice entende que o país está numa encruzilhada. Uma alternativa é ampliar o amparo às famílias. “Ocorre que a expansão de direitos tem limites econômicos. No caso da Previdência Social, por exemplo, não se faz distinção por tipo de união, mas sim por idade. Como os recursos são escassos, o governo opta por estabelecer critérios de inclusão e exclusão no sistema”.
De acordo com a pesquisadora do Nepo, existe nesse caso uma escolha a ser feita entre direitos universais e a adoção de critérios de necessidade e idade em relação à concessão de benefícios. “A decisão vai depender do embate político em torno do tema. Vai vencer a proposta que conseguir mobilizar o maior número de forças dentro de um espectro que vai das mais conservadoras às mais progressistas. Neste momento, é muito difícil tentar vislumbrar o que pode ocorrer. Penso que pode acontecer de tudo, dependendo de como essas forças irão se conjugar”, avalia.
Fonte: Patricia Galvão 

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