quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Impedir a periferia de ter pensamento próprio é forma de racismo, diz escritor moçambicano



O escritor moçambicano Mia Couto disse, em São Paulo, que impedir a população mais pobre de pensar por si mesma é uma prática racista. “Acredita-se que a periferia pode dar futebolista, cantor, dançarino. Mas, poeta? No sentido que o poeta não produz só uma arte, mas pensamento. Isso acho que é o grande racismo, a grande maneira de excluir o outro. É dizer: o outro pode produzir o que quiser, até o bonito. Mas, pensamento próprio, isso não”.
O escritor, que já recebeu diversos prêmios, como o da União Latina de Literaturas Românicas, visitou ontem (7) o sarau da Cooperifa. O evento é realizado toda quarta-feira no Bar do Zé Batidão, na região do Jardim Ângela, zona sul paulistana. Nessas reuniões, que ocorrem há 11 anos, crianças, adolescentes e adultos se revezam ao microfone para recitar poesia.
“É uma coisa nova que me acontece no Brasil, estar em um lugar como este”, disse ao começar o bate-papo com a plateia que lotou a laje do bar para ouvi-lo. Couto já esteve no país em várias ocasiões, mas só na noite de ontem satisfez a vontade de conhecer a periferia de uma grande cidade.
“Faltava-me essa experiência”, ressaltou. “Eu queria visitar a periferia de uma cidade brasileira pela mão de amigos, pela mão de gente da periferia”, acrescentou o autor que também se sente procedente de um lugar periférico.“Sou filho de portugueses que migraram nos anos 1950 para uma pequena cidade. Moçambique já é uma periferia. Eu sou da periferia da periferia, porque é uma cidade pequena”.
A identificação com a periferia da zona sul de São Paulo também está, segundo Couto, na resistência à condição de invisibilidade. Para ele, os moçambicanos têm buscado força para dizer: "queremos permanecer, queremos ser parte do mundo, queremos ser parte de um universo que não é sempre periferia”.
Na visão do autor, o processo é semelhante ao que ocorre com o projeto da Cooperifa que, além de fomentar a criação literária, busca formar público para a cultura produzida na região. “Eu vi aqui um pensamento que está muito vivo e que está contaminando, fazendo acontecer coisas”, destacou o escritor que admite ser fortemente influenciado pela cultura brasileira.
“Vocês não podem imaginar a importância de pessoas como Jorge Amado, por exemplo, nessa vontade de dizer: afinal, podemos falar dos nossos próprios assuntos. Afinal, o negro e o mulato podem ser personagens. Afinal, as nossas coisas têm valor”, disse, ao comentar como a literatura brasileira ajudou na formação das gerações das décadas de 1950 e 1960 em seu país.
Não só os autores brasileiros ajudaram na formação de Mia Couto, mas músicos como Chico Buarque e Caetano Veloso. “Sempre se pensa que um autor literário é influenciado por outros. E, às vezes, não é só. Eu fui muito tocado pela música brasileira”. Ele lembrou que tem um leque muito amplo de influências musicais, incluindo o sambista paulista Adoniran Barbosa.
Como morava em uma antiga casa colonial, contou que na juventude havia pressão para a demolição desse tipo de imóvel e a construção de edifícios mais modernos. “Lá em casa havia esse medo, que não era pronunciado, de que viesse qualquer coisa que nos levasse a isso. E essa canção do Adoniran Barbosa [Saudosa Maloca] era uma espécie de hino. Porque aquela demolição não era só de um edifício, era a demolição de um passado, de um lugar onde fomos felizes”.
Couto destacou que também encontra a África fortemente enraizada na alma dos brasileiros. “O brasileiro tem uma alma mestiça e conseguiu essa mestiçagem naquilo que era mais difícil, no componente religioso. As religiões africanas conseguiram se infiltrar nesse meio mais íntimo, naquilo que é mais fundo da nossa alma.
Mia Couto estudou medicina, formou-se em biologia, mas adotou o jornalismo depois da queda da ditadura em Portugal, em 1975, e engajou-se na guerra de libertação de Moçambique. É um dos autores do Hino Nacional moçambicano, adotado em 2002. Terra Sonâmbula, seu primeiro romance, de 1992, foi considerado um dos 12 melhores livros africanos do século 20 por um júri criado pela Feira do Livro do Zimbábue.

Fonte: EBC

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